terça-feira, 8 de junho de 2010

A urbanidade: uma forma de medir a qualidade das cidade

Jaime Oliva
A ideia de urbanidade é forte como meio de medir a qualidade de vida nas cidades porque ela avalia os resultados produtivos da concentração urbana. Avalia se as cidades e os espaços urbanos realizam bem ou não o papel de proporcionar relações sociais diversas e interessantes para os seus habitantes.
Uma cidade deve propiciar aos seus moradores que tenham acesso a todos os seus recursos. Por exemplo: é comum afirmar-se que uma grande cidade – uma capital - “tem de tudo”: bons teatros, cinemas, importantes universidades, ótimos hospitais etc. Mas será que todos os habitantes das grandes cidades brasileiras podem usufruir desses espaços?
Como é o sistema de transporte nas grandes cidades? Existe transporte noturno para quem quiser ir a espetáculos à noite? Há uma distribuição razoável dos bens culturais pelos bairros, ou eles estão concentrados em apenas alguns? A questão da acessibilidade aos recursos urbanos é fundamental. De que adianta os recursos se não existirem meios de todas as pessoas circularem nos espaços da cidade?
Outra característica importante para que uma cidade tenha bom grau de urbanidade é a existência de espaços públicos. Espaços nos quais todas as pessoas sintam-se com os mesmos direitos e onde haja igualdade. Espaços bem cuidados e seguros, onde o cidadão possa de fato ser cidadão sem restrições.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A identidade geográfica e o presente

Jaime Oliva

Quando vamos falar de uma grande cidade poderíamos começar com a seguinte pergunta: o quanto (e como) do passado de uma cidade “desaguou” no presente?
Evidentemente, na construção de uma cidade seu passado é importante. Mas, não se trata de algo tão óbvio e tão automático. Um exemplo: a maior metrópole brasileira (São Paulo) atualmente é tão estranha à São Paulo do século XIX, quanto se esse passado fosse Jakarta, na Indonésia. Nesse caso, o passado “é país estrangeiro”.
Vamos tratar de um exemplo: e se fosse Recife? Na disciplina de História pode se mostrar como a identidade social que se constrói a propósito da cidade é produto de disputa entre grupos sociais diferentes. Pois, em Geografia essa discussão prossegue, inclusive numa disputa contra a memória coletiva (uma forma da identidade) que recusa o presente e insiste numa identidade que não faz mais sentido para os grupos atuais.
Haveria no presente uma identidade de Recife que trafega dos holandeses, pela arquitetura, pelos grandes personagens, e pouco pelos espaços (só pelo espaço mítico da faixa litorânea), e nada (não nos dois sentidos) pelo presente?
É bom lembrar que Recife projeta no Brasil contemporâneo uma outra identidade, mais pulsante e vital, que vem por meio do seu cinema (Amarelo Manga, diretamente, Cinema, Aspirinas e Urubus, indiretamente), que vem através de sua música (movimento mangue beat).
Essa identidade “concorrente” é produto desse confronto com a identidade mais convencional, de um passado mítico superado e inclui o presente: a segregação urbana versus cidade espaço de convívio; a cultura “popular suja” e vital contra uma cultura erudita e popular mítica; etc. Tudo isso também como componente da construção de relação do sujeito com seu espaço (geograficidade, topofilia).

Geografia dos cheiros

Jaime Oliva

A Geografia enquanto área do saber pode expor sobre as condições que favorecem a produção e emissão de cheiros nos diversos ambientes naturais e artificiais. Iniciando pelos ambientes naturais a grande variedade existente interfere na “Geografia dos cheiros”.
É preciso lembrar que nosso olfato é mais sensível a cheiros ruins (os cheiros mais difíceis de nosso olfato suportar são os que chamamos de ruins). Os cheiros em ambientes de predomínio de elementos naturais podem ser ruins? Os cheiros naturais não são sempre bons? Esse não será, inclusive, um dos motivos para valorizar a natureza em relação aos ambientes artificiais (o urbano e a cidade)?
A situação não é bem assim: cheiros ruins para o humano existem nos ambientes pouco transformados. Aliás, sua detecção serviu (serve) para anunciar situações de perigo, situações hostis ao homem. Erupções vulcânicas podem exalar gases venenosos, por exemplo. Regiões de mangue em zonas litorâneas também não possuem naturalmente cheiros agradáveis para os humanos.
Mas, a princípio, de um modo geral, os cheiros em ambientes naturais são agradáveis ou no mínimo suportáveis para o ser humano. Povos antigos, e grupos que ainda vivem de modo tradicional, que estavam mais próximos da natureza desenvolviam uma “sabedoria olfativa” como meio de importante de percepção de seus ambientes.
Pensando em macro-ambientes é possível fazer um certo “escalonamento” geográfico dos cheiros dominantes:
1. ambientes tropicais (não desérticos) pela presença bem maior de matéria orgânica combinada à insolação e umidade exacerbam o pútrido originário da decomposição de animais e plantas;
2. pode-se afirmar o contrário em relação às regiões frias (inclusive nas altas montanhas), que em geral são “regiões inodoras”. Assim, calor e frio (e outras condições climáticas) interferem muito no cheiro em ambientes naturais.
3. Outros ambientes terminam tendo cheiros típicos. Esse é o caso das regiões litorâneas: a combinação salinidade, mangue (onde houver), mais a matéria orgânica depositada nas praias e “costões” constitui um cheiro mais ou menos universal para esses ambientes (calor, frio e condições climáticas de um modo geral vão produzir variações).
No início do neolítico quando o ser humano começa a se sedentarizar, embora os ambientes ainda fossem dominantemente naturais, algumas “condições novas” vão significar cheiros “produzidos” pelo humano. O ser humano organizado em aldeias irá concentrar seus dejetos no entorno (nos cursos d’água, por exemplo); irá concentrar matéria orgânica animal proveniente da caça ou da domesticação de animais também nas cercanias dos aldeamentos.
Os cheiros anunciam não apenas o pútrido, mas a concentração de bactérias, os riscos de contaminação e disso tudo surgirá a necessidade de saneamento de ambiente. Uma medida foi a domesticar um animal saneador que por ser carniceiro eliminaria matéria orgânica: o cão, o melhor amigo do homem.
No mundo moderno a busca pela aglomeração dos humanos (seres sociais ciosos por contato) se consagrou e consolidou no mundo urbano, nas cidades. Espaços artificiais de concentração de gente, de múltiplas atividades, também se transformaram em espaços de concentração de matéria de todos os tipos, de resíduos químicos e orgânicos (gasosos, líquidos e sólidos) industriais, de lixo e esgoto domésticos, de emissão de gases combustíveis etc.
Essa concentração de matéria, de matéria a ser descartada inclusive, se constitui numa fonte para a produção de cheiros, por vezes intensos. Alguns chegando mesmo a se tornar problemas ambientais (poluição atmosférica difusa que tem odor mais ou menos suportável; cheiros exalados de cursos d’água muito poluídos etc).
As cidades são assoladas por cheiros mais ou menos intensos dependendo de vários fatores. O principal se refere às condições de saneamento; outro fato importante é o meio de circulação (muitos automóveis ou marcha pedestre e transporte coletivo); nível de arborização, as condições climáticas etc.
O certo é que de um modo geral podemos opor os cheiros do urbano com os cheiros dos ambientes naturais, com desvantagem para os cheiros urbanos, pelo menos é o que diz nosso olfato. Se há uma distribuição ambiental dos cheiros mais ou menos apreensível, é possível exercitar o sentido olfativo para perceber os ambientes.

domingo, 28 de março de 2010

O Grande Rio

Jaime Oliva
Há um belíssimo documentário (uma animação) que faz uma espécie de homenagem a um grande rio. Ao rio São Lourenço no Canadá. Faz assim uma homenagem à natureza. É importante salientar que o rio é identificado como uma fonte de vida não só para as diversas formas de vida natural, mas destacadamente para o homem.
Assim o rio é tratado como recurso natural. Isso merece ser ressaltado: quando identificamos e estabelecemos que partes da natureza terão a condição de recurso natural já se trata de uma humanização da natureza, pois não é da natureza do rio ser recurso natural para o ser humano, mas é da "natureza" do ser humano escolher elementos naturais para ser recurso natural.
Logo o componente natural do espaço geográfico já é visto pelo ser humano com um sentido humano (isso por qualquer sociedade). E por que humanização da natureza? Porque a chamada relação homem-natureza quase nunca é uma relação de interação e dificilmente pode ser! Não é uma relação de iguais!
Da natureza e do entendimento de seu funcionamento o homem extrai matéria e conhecimento para a construção das sociedades que no mundo são os sistemas que funcionam com uma lógica própria cada vez mais afastada da lógica natural.
Quer dizer: quanto mais usa, transforma e compreende a natureza mais o ser humano afasta seu modo de vida de formas de vida mais próximas à natureza, que outrora grupos humanos praticavam.
Ao contrário, a “natureza natural” em sua “relação” (que nem voluntária é) com o ser humano é muito alterada segundo desígnios humanos (vide o caso do rio).
Vejam que o documentário nos mostra que embora o rio tenha alimentado às civilizações humanas que ali vão se instalar, seu destino está determinado pelo que aqueles agrupamentos humanos farão (“o grande rio não tem defesas contra a espécie humana”).
Assim como o destino daquelas sociedades será produto do que elas irão decidir. Há um sujeito nessa história e há um objeto. Uma relação sujeito objeto não é de iguais e em geral não é de interação. Será então que essa posição de domínio humano nessa relação venha necessariamente a resultar em degradação e destruição de formações naturais?
Será que essa condição inevitavelmente cega os homens? Ou, em mesmo assim sendo, há possibilidade de um outro olhar possível, mais generoso e inteligente em relação à natureza? (“A energia secreta das águas convidaria os homens a renascer junto com o rio”).

sábado, 27 de março de 2010

A indústria de suínos: o fim do rural

Jaime Oliva

Para analisar os rumos que vem tomando o sistema produtivo agropecuário nas sociedades modernas, sugerimos 2 procedimentos: 1. caracterizar conceitual e criticamente o tema em exame; 2. Problematizar a crítica. Vamos inicialmente à caracterização.
O sistema produtivo agropecuário em exame é aquele dominante nas sociedades modernas e seu funcionamento é o de uma indústria moderna urbana. Não é despropósito que ao invés de se falar em criação de suínos mencionemos a indústria de suínos.
Isso quer dizer que: está organizado empresarialmente com grandes capitais; tem como um dos seus principais insumos o uso importante de tecnologias avançadas; é uma produção em grande escala; funciona em rede geográfica (quer dizer é uma produção voltada ao mercado mundial) etc.
Esse sistema contrasta significativamente com tradicionais formas camponesas (Burkina Faso, Chiapas no sul do México, muitas localidades asiáticas e do Brasil, etc.) mais modestas, associadas ao local, quase que auto-subsistência, com baixo relacionamento com o mercado, etc.
Embora nos dois casos estejamos diante da mesma atividade econômica (a agropecuária) elas são praticadas de modo radicalmente distinto: 1. o sistema agropecuário moderno de Tawain, Canadá, Quebec França é urbano; 2. o sistema agropecuário tradicional de Burkina Faso e outras regiões da África, umas poucas regiões da América, Chiapas no México, Índia etc., é o rural verdadeiro.
Para justificar essa afirmativa, observe como se caracteriza essas dimensões do espaço geográfico:
Espaço rural (cujo conteúdo é a ruralidade)
1. quase a totalidade da população se dedica as atividades agropecuárias – vive na área.
2. a natureza é a força produtiva mais importante – peso dos seus mecanismos sua temporalidade etc. é grande. (Quando no documentário se fala em indústria de suínos está se dizendo que a natureza pesa menos).
3. baixas densidades demográficas (se comparadas com as cidades), dispersão no espaço geográfico.
4. homogeneidade étnica relativa.
5. mobilidade social – sem alterações significativas – a condição camponesa tende a se reproduzir, passando e pai para filho.
6. interações sociais – o número de interações sociais é muito baixo – se comparado à vida urbana – e a área geográfica de abrangência de seus contatos é restrita.
Mudanças na ruralidade a caminho do mundo urbano.
1. é provável que boa parte das pessoas envolvidas na produção de porcos em Tawain (esse é o exemplo que vamos dar) more nas cidades. Os gerentes das atividades têm formação superior, formados nas cidades com intimidade nas relações de mercado, com as tecnologias modernas etc.
2. o sistema produtivo é afastado da natureza, os porcos são selecionados, suas matrizes forjadas em laboratórios, assim como a alimentação é concebida em função da velocidade de crescimento etc.
3. os empregados provavelmente também moram na cidade.
4. a produção e o consumo estão internacionalizados.
Ora essas características são muito mais comuns no mundo urbano que no mundo rural, quer dizer o mundo rural está mudando de conteúdo e está recebendo formas urbanas de se viver e de se produzir.
Agora vamos nos referir à crítica contra esse sistema moderno normalmente sofre: o sistema moderno é responsabilizado pela proliferação de doenças, de impactos graves ao meio ambiente, tais como exemplificam o caso da vaca louca, a doença dos porcos, o risco dos transgênicos etc.
Além disso, há um outro aspecto – esse sistema destruiria as formas tradicionais e estaria dissociado das necessidades humanas essenciais e visando lucro...voltado para a sociedade urbana. Como conclusão passa-se a idéia de que o sistema tradicional seria mais puro, menos impactante e mais humano. O que pode ser uma falácia.
Estamos diante de uma realidade insuperável. Não há como na sociedade contemporânea apresentar como alternativa ao sistema agropecuário moderno, modelos produtivos tradicionais ligados ao mundo rural. Isso é irrealista.
Esse gênero de crítica que demoniza por definição o sistema moderno, tira energia da crítica necessária ao aperfeiçoamento do modelo, algo possível, a despeito do poderio das corporações que atuam no ramo.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Galinhas também são gente?

Jaime Oliva

Movimentos contra o tratamento cruel a animais (como por exemplo, ocorre nos EUA a propósito da criação de galinhas - no Brasil também já houve manifestações a respeito) colocam uma importante questão sobre se haveria ou não, um direito do que chamamos natureza. Seria o direito dos humanos superior?
Os termos do movimento nos EUA são os seguintes: as galinhas estão sem direitos, encontram-se num ambiente estressante e emitem gritos de socorro. Galinhas também são gente, ou então galinhas também têm direitos. Essa é a bandeira dos defensores das galinhas e de muitos defensores do mundo da natureza, que condenam o antropocentrismo dos criadores que vêem na galinha algo a ser manipulado pelo homem. Temos esse direito?
Algumas perguntas para estimular esse debate: dizer que as galinhas também são gente não é uma outra face do antropocentrismo? Elas são galinhas ainda, apesar de toda transformação humana? São porque há o mecanismo da vida como meio de produção, embora seja uma vida quase que inteiramente controlada. A questão é: o quanto afastamos a natureza de seu próprio funcionamento e o quanto é legítimo nossa intervenção?
Nos livros de Michel Serres (O contrato natural) e de Luc Ferry (A Nova ordem ecológica) encontram-se opiniões interessantíssimas sobre o direito natural perante o direito humano. Essa discussão envolve a questão da crueldade no tratamento dos animais; e também o direito do mundo inorgânico.
Os criadores acusados argumentam que os defensores dos direitos dos animais estão tratando as galinhas como se fossem gente? Mas o fato de não serem gente justifica a crueldade? Os maus tratamentos não são problemáticos para o processo produtivo? Esse seria o limite?
Na expressão tratamento humanitário (não é humano tratar mal?) não estaria embutido uma visão que o homem é naturalmente bom, e quando ele não é bom ele está se afastando de sua natureza? Será que não dá para pensarmos essa questão da relação homem-natureza sob outros ângulos?
Outro viés da discussão: a questão da produção econômica e das necessidades materiais humanas - haveria por meios alternativos, menos cruéis formas de produzirmos alimentos em escala necessária para a população mundial? Ambientes menos cruéis para as galinhas – questão do custo e da produtividade, e as consequências para a economia estabelecida e para outros animais não implicariam em custos insuportáveis que aumentaria a fome dos seres humanos?
Esse é um bom motivo para defender esse tipo de produção animal em grande escala? Vale a pena fazer qualquer coisa em função da racionalidade econômica? O frango é muito presente na dieta e na economia. A galinha é a carne mais barata e responsável por boa parte da proteína animal da humanidade. Afinal essa produção em alta escala tem beneficiado a todo mundo? Isso por si só justificaria esse tipo de produção?
Uma das maneiras (ou uma das razões?) de combater o sistema industrial moderno de produção (que destruiria a natureza e infligiria dor ao mundo animal) é a discussão sobre a alimentação saudável. Além de tudo isso a produção capitalista moderna seria um veículo de enfermidades.
O alimento orgânico se harmoniza com um tratamento menos cruel aos animais e é mais saudável para nós. Esse tipo de argumentação faz sentido? É justo a campanha contra a alimentação carnívora como meio de combater a crueldade no tratamento dos animais? O ser vegetal não é um ser vivo também?
Não estaríamos os violentando ao produzi-los como os produzimos? Afinal como devem ser nossas relações com a natureza? Não devemos humanizá-la como sempre fizemos? (esse humanizar aqui é colocá-lo a serviço do ser humano) Humanizá-la significa necessariamente destruí-la e tratamento cruel? Eis as questões e os impasses a serem enfrentados.

Bibliografia
FERRY, Luc. A Nova ordem ecológica; a árvore, o animal, o homem (trad. Álvaro Cabral). São Paulo. Editora Ensaio, 1994. 193 p.
GRAZIANO DA SILVA, José. O que é a questão agrária. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987. (Col. Primeiros passos)
SERRES, Michel. O contrato natural (trad. Beatriz Sidoux). Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1991. 142 p. (Coleção Nova Fronteira Verde)

domingo, 14 de março de 2010

A WEB e o espaço geográfico: analogias

Jaime Oliva

Como forma de investigação sobre o funcionamento e o significado da WEB e da rede Internet algumas analogias com o espaço geográfico podem ser feitas. Do mesmo modo, compreender como essa tecnologia muda nossas vidas e passa a compor, de certo modo, o espaço geográfico é uma reflexão que não pode deixar de ser feita.

Se tivermos em conta que a sociedade se faz pelas relações sociais e que para estas é necessário um espaço geográfico que as propicie – meios de transporte e cidades, por exemplo, a web e a internet também constituem um espaço – um ciberespaço, como é chamado esse meio de comunicação e informação.
Tanto o espaço geográfico quanto o ciberespaço são contextos relacionais, e eles próprios se relacionam e se interpenetram. Aqui vamos expor alguns aspectos dessas relações entre esses dois espaços e apontar o que cada um possibilita e logicamente suas diferenças.
Por exemplo: no ciberespaço é possível entrar-se num site francês sem passaporte, no espaço geográfico isso para a maioria dos habitantes do mundo não é possível. O ciberespaço tem um conteúdo mais desnacionalizado do que os territórios do espaço geográfico. Vamos comentar alguns aspectos dessa constituição.
O Vale do Silício é um pólo tecnológico. Nele se associam universidade e empresas com seus pesquisadores. Numa primeira fase de desenvolvimento da WEB e da Internet a idéias que surgiram e foram comercializadas eram na verdade idéias organizadoras do ciberespaço.
O Yahoo e outros sites de busca (de primeira geração) nada mais são do que formas de circular com algum direcionamento no ciberespaço. O espaço geográfico possui muitos correspondentes para isso. O ciberespaço está sobre um suporte eletrônico assim o espaço geográfico tem como base o substrato natural.
Sites e portais, buscadores, linguagens, protocolos, etc. representam um conjunto de elementos que estruturam o ciberespaço sobre seu suporte eletrônico que é constituído de sistemas energéticos e telefônicos. Atualmente as novas idéias que se tem sobre o ciberespaço referem-se não tanto mais a como constituí-lo mas sim como aproveitá-lo e mantê-lo.

O ciberespaço pode dar visibilidade a empreendimentos pequenos – é uma outra plataforma de onde se empreende novas relações entre os seres humanos e de extraordinária eficiência, mudando nossas relações com a distância. Nele se atua em várias escalas – desde o plano local, quanto mundial. Nele coloca-se em contato pessoas diretamente (uma presença de corpos ausentes).

As relações humanas não podem ocorrer inteiramente no ciberespaço e isso é óbvio. Não há possibilidade de contato corporal e transporte físico o que só é possível no espaço geográfico. No ciberespaço, um espaço tecnológico por excelência, o ser humano pode entrar em contato e descobrir muitas informações que ele nem sabia que existia e que nem estava procurando (serendipidades). Nesse sentido ele é parecido com o espaço de uma grande cidade.
Todo novo contexto relacional é potencialmente um espaço para novas atividades econômicas. No ciberespaço está se desenvolvendo cada vez mais o seu teor econômico: ele pode ser explorado como meio de vendas – sites para transações bancárias, para vendas de produtos diversos, etc. e pode também ser explorado para vender informações propriamente, muitas produzidas nos próprios sites. E todos sabem a importância da informação em nossa sociedade.
Mas como se compra a informação? Propaganda é o mecanismo, assim como foi durante muito tempo na televisão. Tal como nas cidades os lugares que acumulam muita gente servem para divulgar coisas. Esse espaço, logo, pode ser comercializado.
Houve (e há) várias iniciativas de incrementar as atividades econômicas de uma cidade criando sites que visam ampliar as interações e socializar informações. Por exemplo, é o caso de Sheffield, na Grã-Bretanha. Na verdade, profissionais estão sua cidade na WEB. Fazer de um site sobre essa cidade um espaço lucrativo. Eles querem criar a marca Sheffield – todos sabem a importância de se construir uma imagem e o ciberespaço é ele próprio imagem.
A cidade que ali vai estar é a cidade construída pelos profissionais e por todos que interagirem (pode-se atualizar no site e dar vida ao quê estava decadente como artesões e ramos industriais da época da revolução industrial).
O que vai se escolher como atração, o que se vai promover, o jeito que se vai divulgar poderá ser positivo para a cidade: na verdade no momento em que esses espaços se sobrepõem e se interpenetram está se alargando o contexto relacional da cidade, além do espaço da cidade propriamente, da Inglaterra, enfim, com o mundo todo.
Influências sobre as regiões e sobre o espaço geográfico: tanto Sheffield vai para o mundo como recebe o mundo – dependendo do grau e da qualidade dessas ocorrências a região pode mudar significativamente. São influências vindas por redes – são verticais e não horizontais (essa última vem das proximidades).
Por fim o ciberespaço não concorre com o espaço de uma cidade, por exemplo. Ele não pode substituir o contexto relacional de uma cidade, na medida em que ele tem características próprias. No entanto, no momento em que as relações sociais se empobrecem nas cidades ele pode vir ocupar um espaço de relações que deveria ocorrer nas cidades. Nesse caso teremos deformações. Na verdade o ciberespaço pode acrescentar à cidade e não substituí-la.

sábado, 13 de março de 2010

Geografia e epidemias

Jaime Oliva

Algumas das grandes epidemias que vitimaram grandes contingentes de seres humanos têm em seus nomes uma dimensão geográfica: gripe espanhola, gripe asiática, por exemplo. Isso não é mera curiosidade e tem, na verdade, muitas implicações.

É possível mostrar mais detalhadamente essa relação entre a expansão de doenças e o espaço geográfico: os seres humanos convivem com microorganismos, mas a cada novo território que ele usa e transforma mais microorganismos são introduzidos nessas relações.
Para muitos desses microorganismos e suas mutações o corpo humano já adquiriu defesa, contudo quem ainda não entrou em contato com alguns desses microorganismos não possui essa defesa.
Isso explica porque muitos microorganismos que os brancos colonizadores trouxeram para a América e que para estes eram inofensivos foram tão letais para as populações indígenas.
O que não quer dizer que não existam microorganismos para os quais o corpo humano não tenha defesa. Para alguns não há tempo e por isso desenvolveram-se fórmulas de criar essa defesa artificialmente. Entre uma dessas defesas está a geográfica.

O que são as defesas geográficas contra a ação nefasta dos microorganismos: para melhor entendimento dois conceitos são chaves, são eles: endemia e epidemia. Endemia refere-se à doenças provenientes de microorganismos que estão circunscritas a determinadas porções do território.

A febre amarela é um exemplo: ela está presente apenas em algumas regiões. Só são contaminados aqueles que vão para aquela área, porque os agentes transmissores estão ali situados e dificilmente conseguem migrar. Esse é o caso também da malária (ou paludismo, maleita).

Essa terrível doença ataca muitas pessoas no planeta mas ela é endêmica a algumas regiões: no Brasil sua mais importante manifestação é no norte do país onde há muitas regiões florestadas e abundância de cursos d’água, já na África, praticamente o continente todo possui zonas de malárias. São tantos os locais de endemia da doença, que ela transita para a situação de epidemia.
O que é epidemia: é quando doenças transmitidas por microorganismos extrapolam territórios circunscritos e começam a contaminar pessoas em vários lugares. Isso quer dizer que o agente transmissor migrou da área original de contaminação de modo descontrolado. Em geral isso acontece quando o agente transmissor é o próprio homem.
Esse é o exemplo das gripe espanhola que chegou ao Brasil e de muitas outras epidemias, como por exemplo a AIDS. Quer dizer a epidemia é a proliferação de doenças que deixam de ter como referência o território geográfico estático e passa a ter relação com os fluxos, os movimentos migratórios, as redes geográficas.

Visto essas duas diferentes formas espaciais (endemia e epidemia) de manifestação de doenças geradas por microorganismos a medicina em sua ação preventiva busca atuar no espaço (além de atuar no campo propriamente médico) para conter as doenças.

Isso que chamamos de defesa geográfica contra as endemias e as epidemias: onde a doença é endêmica busca-se sanear o ambiente (rural ou urbano), tentando exterminar-se os agentes portadores e transmissores dos microorganismos.

Quando esses agentes podem migrar e gerar uma epidemia, busca-se o controle das fronteiras, por exemplo: é esse o sentido de barreiras em estradas, por exemplo, impedindo que se transportem seres vivos, alimentos de uma região para outra.

São muitas as ações nessa direção e é por isso que pode ser dito que os médicos em suas ações contra os microorganismos acabam também sendo agentes organizadores do espaço geográfico.

quarta-feira, 3 de março de 2010

NOVA YORK VENCE O CRIME?

Jaime Oliva

(O texto é uma proposta de aula)

O programa de segurança denominado “Tolerância Zero” adotado em Nova York é entre nós um velho conhecido. Há mais 10 anos ele aparece em nossa imprensa e nas campanhas políticas para cargos de governador e prefeito (principalmente) como um exemplo de política de segurança a ser seguido para combater a criminalidade crescente que infelicita nossas cidades.
A denominação desse programa “tolerância zero” é extra-oficial e tem suscitado aqui no Brasil uma série de deformações. Notícias a respeito apareciam nos jornais diários e o tom predominante era o seguinte: a criminalidade caiu nessa cidade porque (inclusive os pequenos delitos) é tratada com mais severidade do que era até então.
A confusão está em torno do termo severidade que deveria ser trocado por: a criminalidade vem sendo enfrentada com mais competência pelas forças policiais. A idéia de maior severidade e de tolerância zero, passa a impressão de maior dureza e aqui no Brasil a defesa de maior dureza no tratamento da criminalidade é sempre entendida como autorização para a polícia transgredir a lei no combate ao crime, aumentando o número de mortos nas diligências policiais, o que não é o caso em Nova York.
A criminalidade caiu e a polícia mata menos e a lei não é transgredida. Ser mais severo significa punir todos os delitos sem exceção, mas dentro da lei, com mais eficiência e com as penas que já existiam, e não aumentar o castigo e a violência contra o delinquente como muitos estão imaginando por aqui. E aqui já podemos deixar uma questão interessante: por que sempre que se fala em política de combate à criminalidade a questão da competência fica em segundo plano e a do castigo em primeiro?
Preparação da aula
(A) professor (a) deve se munir de dados evolutivos sobre a criminalidade de sua cidade, de sua região, na medida do possível. Se os órgãos públicos não tiverem esse dado disponível, em geral a imprensa local possui. Se conseguir dados brasileiros também ajuda.
A idéia é que o professor tenha informações seguras que sirvam para dar um tom correto no problema, pois a emoção que envolve o tema da criminalidade normalmente tumultua qualquer discussão ou aula, pois passa a ser conduzida por uma estatística manipulada e movida pela paranóia do que acontece em alguns centros, e não necessariamente em todos os lugares.
O professor pode estimular a discussão com as seguintes propostas: a) a questão da violência que vem sendo tratada como um grave problema no país, expressa sua gravidade aqui em nossa região, em nossa cidade? É perceptível um aumento das manifestações de violência? Houve aumento significativo da criminalidade que tenha alterado os hábitos das pessoas? A arquitetura dos edifícios reflete essa mudança?
b) Violência pode ser tratada como sinônimo de criminalidade? É certo que muitas formas de criminalidade usam de violência, mas outras não. Um ato de corrupção é crime, mas não faz necessariamente uso da violência física (eis mais uma diferença violência física e violência não-física). Em grande parte das cidades africanas uma criminalidade com roubos e homicídios é muito baixa, mas há a presença notória de violência nas outras relações (entre etnias, entre homens e mulheres etc.). Aumento de violência e criminalidade são a mesma coisa?
c) Caso os alunos não sejam de cidades grandes seria interessante indagar-lhes sobre a imagem que eles possuem dessas cidades quanto ao tema em questão; e vice versa: para os alunos de cidade grande como eles imaginam que encontra-se o aspecto criminalidade nas cidades menores.
O simplismo na interpretação da criminalidade: o tema da criminalidade é reconhecido como se referindo a um problema gravíssimo de difícil resolução, no entanto, contraditoriamente, ele é sempre tratado como algo não complexo. Para resolvê-lo basta uma polícia enérgica e melhorar a condição econômica das pessoas. Em outras palavras: repressão e emprego. Infelizmente as coisas não são tão simples assim. Vejamos:
A) Nova York frequenta os noticiários sobre esse tema não só porque é Nova York, mas em função de ter sido sempre uma cidade com uma incidência elevada de crimes. Isso mesmo sendo uma cidade muito rica e sempre com uma polícia de porte.
O mesmo pode ser dito em relação a São Paulo, que no quadro brasileiro é disparado a cidade mais rica e com a polícia mais numerosa. E em segundo lugar vem o Rio de Janeiro, e ambas, como mostram os dados têm elevada criminalidade. Na verdade, as duas ao lado de Recife, concentram mais da metade dos crimes em grandes cidades do Brasil. Afinal o que acontece?
Outros dados que chamam atenção no noticiário conhecido quando o tema é criminalidade: são as batidas referências à duas cidades completamente diferentes: Medellín na Colômbia e Joanesburgo na África do Sul. Ambas possuem índice assustador de criminalidade e Joanesburgo é uma cidade rica. Por quê? Certamente nem a questão econômica e nem o papel da polícia, vão por si só explicar essas situações.
Aliás, seria interessante encomendar uma pequena investigação aos estudantes sobre Joanesburgo e Medellín. São casos extremos, de cidades peculiares, porém todas as cidades possuem peculiaridades que devem ser entendidas para refletirmos sobre a criminalidade.
B) A criminalidade baixou em Nova York porque a polícia agiu de modo mais competente em associação com outras políticas, e isso serve para pensarmos o combate da criminalidade em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo: a polícia munida de estatísticas verifica a intensidade e a distribuição geográfica dos crimes.
Quando os crimes acontecem em grande quantidade num lugar isso pode indicar que gangs e bandos podem estar controlando a área, que ali eles se territorializaram (não é isso que acontece em muitos bairros periféricos de São Paulo e nos morros do Rio de Janeiro, por exemplo?).
Pois bem, a polícia novaiorquina estuda a situação, diagnostica o quadro e elabora uma ação estratégica para debelar a situação localizada, mas não apenas do ponto de vista da repressão e sim atuando em conjunto com a comunidade que quer livrar-se daquele mal, resgatar seus filhos e poder construir suas vidas em outros moldes. Onde se instala a criminalidade e em que situação ela prolifera?
Muitas respostas podem ser dadas, mas obviamente onde o Estado não está presente e onde as condições são precárias é mais fácil essa instalação. Para debelar a criminalidade nessas áreas é preciso que o Estado se faça de fato presente... para sempre e não apenas momentaneamente.
Em Nova York nas áreas em que a criminalidade era grave, depois de combatido o crime mais imediato, a polícia permaneceu em forma de polícia comunitária, constante e sempre muito bem informada como meio de orientar sua atuação.
C) Retirar um território do domínio de uma gang é resgatar o caráter público de um espaço. Isso não é apenas uma constatação, isso é um principio chave a ser observado no entendimento da vida nas cidades e na questão da criminalidade.
Onde não há o espaço público a criminalidade tende a se elevar: em Joanesburgo não há espaços públicos, somente espaços segregados. A cidade é bem pouco densa, formado com condomínios fechados, ruas vazias, dominada pelo automóvel e com bairros populares super precários.
São Paulo caminha para algo mais ou menos assim: ruas vazias, o andar a pé extinguindo-se, espaços públicos degradados: quem tem que andar a pé obrigatoriamente, invariavelmente vê-se vulnerável pela solidão.
Há um insuperável trabalho sobre cidades da autora americana Jane Jacobs (Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas) no qual o tema da segurança das ruas é tematizado nessa direção mencionada. Ruas com vitalidade e com sua dimensão pública preservada são ruas onde o risco da criminalidade é bem menor. Uma boa discussão seria, portanto, caracterizar o que é espaço público e discutir o papel que isso teria na melhoria do quadro da cidade no que se refere à questão da segurança.
D) Por fim, algo bem interessante e ao mesmo tempo intrigante aconteceu com esses últimos dados sobre a criminalidade em Nova York. Essa queda se deu em pleno trauma ocasionado pelo atentado que pôs fim a muitas vidas e as torres do World Trade Center. Nesse período boa parte dos recursos da “tolerância zero” e do empenho da polícia foram desviados por motivos óbvios. Mesmo assim a criminalidade cedeu.
Haveria alguma relação entre esses dois fenômenos? Tamanha violência do atentado teria inibido a violência do crime comum? Eis algo interessante para se refletir.
Bibliografia
Jane JACOBS. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Oriente Médio - velhos hábitos da nova geração


(o que segue é uma sugestão de aula)
Jaime Oliva
Países como Marrocos, Síria e Jordânia abrigam sociedades cuja boa parte de seu funcionamento ainda é regida conforme as características básicas das sociedades tradicionais. Se compararmos esse tipo de sociedade com o que caracteriza as sociedades modernas vamos notar diferenças radicais.
Num mundo em que predominam as sociedades modernas, cuja dinâmica ainda permanece, as sociedades tradicionais costumam ser avaliadas como "atrasadas". Mas, o que interessa discutir, é como podemos conceituar uma sociedade tradicional e ao mesmo tempo compreender as dificuldades existentes para ela se transformar, pois mudanças dessa importância são sempre dolorosas.
Olhando do Brasil, país em que o "processo de modernização" está mais avançado, a nossa tendência é achar que esses países do Oriente Médio, que ainda vivem numa certa medida da forma tradicional, representam um mundo estranho e incompreensível. Isso não é verdadeiro. Nossa proximidade com eles é maior do que parece, isso porque há algumas dimensões na vida brasileira que funcionam ainda de modo tradicional.
Ademais, o processo histórico de modernização do mundo ocidental ainda é recente: quer dizer, estudar nosso passado de certo modo é estudar as sociedades tradicionais. Logo, para interpretar as ocorrências atuais desses países é importante se municiar de alguns conhecimentos conceituais básicos de funcionamento das sociedades tradicionais e das sociedades modernas.
Essa é uma preparação básica para uma aula de geografia para que a análise ultrapasse a estranheza e seja mais profunda e compreensiva. Seria importante por meio de mapas o professor mostrar não só a localização desses países e suas condições naturais, mas sua relação com os vizinhos (em especial Israel).
Com outros materiais e mesmo por meio de exposição do professor contextualizar a situação geopolítica desses países – os conflitos com o mundo ocidental protagonizado recentemente pelo Iraque e em outro momento pela Líbia; o conflito palestinos e Israel; os conflitos no Líbano; a questão do petróleo, etc. Uma visão histórica da relação desses povos com o Ocidente também seria interessante.
O que se pede aqui é que não se parta diretamente para a discussão sem que algum conhecimento prévio sobre a região exista.Países como Síria, Marrocos e Jordânia estão sofrendo um lento processo de transformação mais ou menos em direção a valores da modernidade. Esse processo tem sido doloroso por que as resistências da tradição são enormes.
Essa resistência ainda é maior porque os agentes modernizadores internos, tanto quanto seus aliados externos (no mundo ocidental) não têm conduzindo suas ações de modo a mostrar as vantagens da transformação. Um caso marcante disso ocorreu no Irã onde um membro da nobreza local o Xá Reza Palevhi impôs uma modernização abrupta no plano da economia, beneficiando parte inexpressiva da população e ignorando o plano da política no qual ele reinou ditatorialmente, ocasionando uma revolta muito grande contra o mundo ocidental e fazendo ressurgir naquele país um estado funcionando em associação com a religião, traço marcante das sociedades tradicionais.
Elementos das sociedades modernas no Oriente Médio: a estruturação de países com uma estrutura estatal que possuam ministérios técnicos (relações exteriores, economia, agricultura, indústria, saúde, etc.) e outras instituições representam um aspecto da modernização, e isso, embora de modo incipiente está presente nesses países, o que demonstra que existe, ao menos em parte e no plano da gestão técnica e econômica, um processo de modernização.
Caso contrário como esses países esperariam receber investimentos estrangeiros para mover suas economias? Isso seria possível sem ajustar o funcionamento de suas economias aos moldes do mercado mundial, cujas regras de funcionamento são modernas?Será que o avanço da modernização necessário no campo de economia exigirá que em outros aspectos esses países de modernizem, por exemplo, democratizando o poder político e concedendo direitos iguais aos homens para as mulheres?
Ou os interesses econômicos mundiais podem perfeitamente adaptar-se a essas estruturas de poder tradicional (a reportagem fala em transmissão do poder por hereditariedade). Por exemplo, o mundo capitalista moderno encontra muita dificuldade para negociar com a China onde o poder político é ditatorial, embora não de tipo tradicional?
Tomemos o caso de algumas figuras políticas recentes como as ex-governantes de dois países que também vivem situações de convívio conflituoso entre o mundo moderno e o mundo tradicional – o Paquistão e a Índia. Estamos nos referindo a Bennazir Bhutto no Paquistão e a Indira Gandhi na Índia. Nesses dois países predomina uma condição da mulher que é de subalternidade tanto na vida privada quanto na vida pública (onde sua participação é inexistente).
Como explicar então a presença dessas duas mulheres no poder máximo desses países? Seus pais foram governantes e o valor da hereditariedade pesou. Mas terá só sido isso? Como explicar a reação negativa das mulheres às mudanças propostas pelos jovens governantes? Haveria algo semelhante em nossa sociedade? O que é moderno, o que é tradicional: pode-se obter uma melhor compreensão sobre o que é uma sociedade tradicional tendo em conta o presente da expansão das sociedades modernas.
O termo moderno, em nossos dias, é muito usado. Parte de seu conteúdo original perdeu-se. Quando o usamos referindo-nos a uma sociedade qualquer, ou a partidos políticos, ou a comportamentos individuais ou sociais, passamos uma impressão positiva, como se essa expressão fosse um adjetivo que se opõe a antigo, atrasado e superado. Mas, o sentido conceitual dessa expressão não é esse. Sociedade moderna é uma forma de sociedade.
Vivemos uma época de predominância desse tipo que se refere ao estilo, aos costumes ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que vem transformando mais ou menos mundiais em sua influência. E sobre que tipo de sociedades as sociedades modernas vem se impondo? Sobre as chamadas sociedades tradicionais.
Essa última expressão passou a ser usada em larga escala pelos estudiosos para designar sociedades que possuíam certas características das quais vamos enunciar algumas que vão nos ajudar a entender melhor o que ocorre na Síria, Marrocos e Jordânia:
Poder político legitimado (validado) por tradições culturais – mitos, religiões e hereditariedade: esse foi o caso das várias formas de monarquia absolutista. Eis uma opinião de um historiador importante: “A meu ver a Revolução Francesa e os feitos de Napoleão abriram os olhos do mundo. Antes as nações não sabiam nada, e as pessoas pensavam que os reis eram deuses sobre a Terra e que tinham que dizer que tudo que eles faziam era bem feito”. (Eric J. Hobsbawn)
Poder político centralizado, com formas razoavelmente avançadas de organização estatal, e apoiado em relações aristocráticas, em que as possibilidades de representação política do indivíduo estão praticamente ausentes. Em comparando essas duas características políticas com as sociedades modernas veremos que nestas últimas o poder político não é mais legitimado pelo fato do governante pertencer a hierarquia da religião dominante ou a família real, independentemente de suas qualificações pessoais.
Nas sociedades modernas o governante disputou o poder por meio de processos políticos impessoais, com regras políticas com base na representação, partidos políticos, tudo isso independentemente de seu grau de parentesco com a nobreza ou de sua posição em qualquer estrutura religiosa. Também nas sociedades modernas a população tem peso na escolha de seus governantes por meio do processo eleitoral.
Bibliografia GIANSANTI, Roberto & OLIVA, Jaime. Espaço e Modernidade; temas da geografia mundial. São Paulo, Editora Atual, 1996.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O que pode e para que serve uma CPI

Jaime Oliva

Talvez os mais jovens não tenham se dado conta, mas desde que o Brasil deixou de ser um regime militar (15 de março de 1985), e ingressou numa fase que busca se orientar por princípios democráticos. E nessa fase as entranhas de nossas práticas políticas foram expostas muitas vezes. Foram crises políticas muito sérias que chegaram a resultar na cassação de mandato de um presidente eleito (Fernando Collor). Por várias vezes, o noticiário na imprensa destacou cassações e mais cassações de deputados. Em geral, o motivo dominante era a corrupção, que se dava pelas mais diversas formas.
Diferentemente do período militar no qual as cassações existentes tinham, basicamente, outra motivação e eram decididas e executadas pelo poder militar que estava no governo (no poder executivo), na fase democrática as cassações são iniciativa das Assembleias de deputados e senadores, o que no Estado-nação moderno denomina-se poder legislativo. E na maioria das vezes as cassações são decididas ao término dos trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito, as conhecidas e familiares CPIs. Compreender o que são essas comissões e seu papel no quadro político brasileiro será objeto dessa atividade. E desde já que fique claro que esse papel é bem mais complexo do que parece. Elas se tornaram operadores importantes e polêmicos no quadro político brasileiro.
Por exemplo: é comum assistirmos quedas de braço entre forças políticas pela instalação e controle de uma CPI no Congresso Nacional. Os lados em disputa sempre têm parecer contrário sobre a finalidade e os benefícios das CPIs em geral, isso, claro dependendo da posição em que cada lado se encontra: se governo ou oposição. Ao menos essa é a posição de um prestigioso deputado em entrevista à Veja do dia 15 de junho de 2005: “ [...] o que nos leva a uma situação em que, em 2006, restará só perguntar de quem será a vez de pedir a CPI – e de quem será a vez de abafá-la”. (Deputado Fernando Gabeira).
Compreender as funções destinadas ao nosso poder legislativo de realizar inquéritos (investigações) que podem condenar pessoas, chegando mesmo a depor presidentes exige que se tenha sob controle em que gênero de organização institucional se organiza o poder legislativo. Se estrutura no interior do Estado-nação moderno, construção que supera as formas estatais anteriores que se assentava nas tradições monárquicas.
Diferentemente, no mundo moderno o Estado será uma instituição impessoal e concentrará o poder de agir e terá como responsabilidade organizar a nação, a vida política, a vida econômica e as regras de convivência social. Governos, deputados, senadores, vereadores serão apenas representantes momentâneos desse poder político e obterão sua legitimidade por terem origem na vontade da população. Por meio da democracia representativa. Para dar conta de suas responsabilidades o Estado precisa de poder, ou melhor de poderes. Esses poderes são os seguintes: legislativo, judiciário e executivo.
Uma visão ideal afirma o equilíbrio entre esses poderes, mas na vida real dos Estados nacionais (e no Brasil isso é claro) esse equilíbrio não ocorre. Há, em geral, um desequilíbrio que favorece o poder executivo, o que denominamos governo. No quadro político brasileiro o que eventualmente tem equilibrado esses poderes é o instituto da CPI no poder legislativo, porque trata-se uma comissão que tem o poder efetivo de investigar as ações do poder executivo de uma maneira mais incisiva do que as práticas rotineiras no poder legislativo. Embora, recentemente as CPIs estejam mais frágeis.
Além da função legislativa (de criação de leis; aprovação ou reprovação de projetos propostos pelo poder executivo) o poder legislativo também possui a função fiscalizadora dos outros poderes e da administração pública em geral. Para exercer essas funções além das votações no plenário (reunião de todos os parlamentares eleitos) o poder legislativo (por exemplo, a Câmara Federal de Deputados) possui uma série de comissões ordinárias que dão conta de vários procedimentos preparatórios e também tomam algumas decisões segundo o regimento das casas parlamentares. Aliás, uma atividade interessante a ser proposta podia ser a pesquisa sobre como são os regimentos do Senado Federal e Câmara dos Deputados, pois neles se encontra boa parte da lógica do funcionamento desse poder e, muito raramente, esse aspecto vem a público. Mas voltando: a Câmara de Deputados possui comissões ordinárias e fixas, como por exemplo: a Comissão de Orçamento, a Comissão de Ética etc.
Essas comissões tem poder de fiscalização e controle, mas com algumas limitações, que fazem parte da regra do jogo. No entanto, quando parte dos parlamentares (pode ser um apenas) entende que um tema qualquer merece uma investigação especial, com menores restrições ele pode propor a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). No caso da Câmara Federal é necessário que 1/3 dos Deputados assinem o pedido de uma CPI para que ele comece a caminhar. A CPI, portanto, é uma comissão momentânea (com prazo para iniciar, prazo para acabar) que possui meios muito eficazes de investigação (pode quebrar sigilos bancários de qualquer um, por exemplo) e que se organiza em torno de um tema, de uma questão, que os parlamentares entenderam não ser investigada de maneira adequada por outros meios. Assim, desse modo, uma CPI é um momento em que o poder legislativo exerce um poder mais elevado do que em momentos rotineiros.
Não seria essa a razão para se afirmar, que ao menos nessa situação, o poder legislativo fica em pé de igualdade com o poder executivo? A resposta será positiva, principalmente, se o investigado no caso for o executivo. E aí reside algumas questões: quem normalmente toma iniciativa para propor algum tipo de investigação sobre o poder executivo? Quem se opõe? Por quê? Se os poderes são em tese independentes por que parlamentares da mesma força política do presidente eleito jamais apoiam CPIs? Eles não teriam também o dever de fiscalizar o executivo usando os instrumentos mais adequados para cada situação? Estaria certo o deputado Gabeira ao afirmar que o parlamentar que apóia o governo trabalha contra a aprovação de CPIs e o parlamentar que se opõe sempre defende as CPI sobre o governo?
Esse automatismo não desmoralizaria o instituto da CPI? Isso não nos leva à grande questão: as CPIs de instrumento legítimo de um parlamento não passa de modo a ser apenas um instrumento político (que dizer atende interesses políticos de forças específicas e não interesses públicos)? O fato da mídia, logo, de algum modo, a opinião publica, expor mais largamente os trabalhos parlamentares quando ocorre uma CPI colabora para que ela seja direcionada mais para o interesse público?Tendo como referência as CPIs mais importantes que ocorreram ultimamente (pode pesquisar a respeito): caso Collor, dos anões do orçamento, do Banestado, do Crime organizado – narcotráfico, etc, pode-se afirmar que o que estava predominando no caso eram interesses políticos, mais do que interesses públicos?
Para saber mais
A democracia representativa
Democracia representativa significa que as deliberações coletivas, que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade (...) Um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais etc. (Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia)
A concentração de poder no Executivo
Fenômeno comum no mundo moderno, sem dúvida a maior dose de poder político imediato está concentrada no chamado poder executivo. Ou, se quiser, no governo [...] no caso brasileiro a centralização de poder no governo ultrapassou todos os limites. A alegação [mais comum] que sustenta essa posição, é de que a Constituição de 1988 teria tornado o país ingovernável. Com isso, abrem-se frentes [de legalidade discutível] de controle do poder executivo sobre os demais poderes e forças políticas. Vejamos dois exemplos.
1.O Poder executivo federal (o governo) envia anualmente para aprovação no Congresso nacional o orçamento da União (quanto e onde vai se gastar no ano). Os parlamentares não somente votam, aprovando ou não, o orçamento, como podem incluir emendas definindo onde parte do dinheiro deve ser gasto. Essas emendas são, em geral, propostas de gastos nos redutos eleitorais de cada parlamentar.Após a inclusão de sua emenda no orçamento, o parlamentar começa a se empenhar para que essa verba seja liberada. Essa liberação depende do poder executivo que, dessa maneira, acaba por controlar e dirigir conforme seus interesses programáticos a vida política do legislativo. Em troca de favores regionais, aprova medidas políticas de seu interesse, eliminando boa parte da resistência e autonomia do Congresso Nacional.
2. Outro fenômeno de submissão dos poderes legislativo e judiciário ao executivo é o recurso das chamadas medidas provisórias. Mecanismo herdado do regime autoritário à disposição do poder executivo federal, com elas o governo legisla à vontade, mudando regras econômicas e de outras atividades “provisoriamente”. O Congresso Nacional tem um prazo de um mês para aprová-la ou rejeitá-la. Enquanto isso, ela entra em vigor, alterando as relações na vida real. Caso o parlamento não examine a medida a tempo, ela é reeditada com pequenas alterações e assim sucessivamente. Por outro lado, caso o Congresso rejeite a medida, ela é transformada e também reeditada, prevalecendo mais um tempo. Esse é um caso no qual a vontade do executivo é lei[...] Eis uma das razões do fracasso da democracia representativa no Brasil. Nossos governantes [do executivo] possuem mais poder do aquele que lhes foi dado por nós. (Adaptado de Jaime Oliva e Roberto Giansanti. Espaço e Modernidade. S.P. Atual Editora.)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A ordem pós-segunda guerra

Jaime Oliva

As referências ao período do pós-segunda mundial não são apenas de celebração do fim de um conflito monstruoso que levou a morte e a infelicidade para várias dezenas de milhões de pessoas, atingindo diretamente e indiretamente mais de duas gerações de pessoas não apenas na Europa. Trata-se de um marco cujos desdobramentos, complexos por sinal, encontram-se na base da produção, mais do que uma nova ordem internacional, de uma nascente e inédita ordem mundial, algo que, nalguma medida, ultrapassa as relações convencionais entre nações soberanas.

Na ciência geográfica, por exemplo, identifica-se com clareza que no pós-segunda guerra uma nova ordem geográfica, essencialmente distinta da anterior se estabeleceu. E essa nova ordem seria a condição para a chamada globalização, assim como permitiria também construir uma globalização alternativa à globalização dominante. Discutir o perfil dessa nova ordem mundial herdeira direta do que resultou da segunda guerra será o objeto das reflexões e atividades que serão aqui sugeridas.

O historiador britânico Mark Mazower apresenta a Europa do século XX como um perigoso laboratório de experiências sociais – como um continente sombrio[1], expressão incomum para referir-se ao continente que foi o berço da civilização ocidental e da democracia. De fato, o adjetivo não é exagerado por tudo que significou as guerras mundiais, a experiência nazista e a stalinista e as ações imperialistas noutros continentes.

Mas a ordem nova que se apresenta no mundo e que, se comparada ao passado, apresenta traços civilizatórios superiores, tem na Europa um de seus principais protagonistas. Isso não quer dizer que vivemos agora no paraíso. A ordem atual ainda muito pouco compreendida apresenta um rol de problemas e injustiças sociais de todos os gêneros, ainda por ser resolvido. Uma análise que vise alguns ângulos dessa ordem pode nos aproximar dos problemas:
A atenuação da geopolítica
: a geopolítica é uma prática presente na ordem internacional, mas uma prática dos Estados nacionais. Uma prática da soberania nacional. Essa palavra é muito bem vista, não é mesmo? Não seria porque ela estaria associada à autonomia e a liberdade de um povo? Ao domínio de um território próprio que é indevassável? Mas, poderíamos concluir que há uma contrapartida complicada nessa formulação da soberania. Vejamos: a soberania é a base da geopolítica, é a razão da existência da estrutura militar de cada país.
Afinal, é obrigação de um Estado soberano defender os interesses do seu povo independente dos interesses dos outros. Na questão atual do Iraque no cenário da ONU, uma instância política do conjunto das nações surgida no pós-guerra, a posição dos EUA foi, a rigor derrotada. Mas, apesar de pertencer (e até ser o principal sustentáculo financeiro da ONU) a ONU, de ser um de seus fundadores principais, os EUA colocaram sua soberania acima das posições que se construíram nas Nações Unidas.
A soberania nacional, nesse caso, não reconhece e nem se submete à existência de decisões na esfera global. E pode, entre outras razões, não fazê-lo, em razão de sua força militar. Não vale aqui a força, a violência, a capacidade de guerrear? A geopolítica define-se como a ação política em escala internacional, que em última instância faz uso de uma força não política: a guerra, mesmo que virtualmente.
Mas, a pergunta a ser feita que pode gerar uma boa discussão vem do final da segunda guerra, afinal, como a própria reportagem da Veja destaca, a União Européia é constituída de por parceiros que há sessenta anos trucidaram-se mutuamente no século XX. Eis a grande questão, que poderia estar estabelecendo um novo marco civilizatório de verdade para a humanidade:
Não estaria havendo uma atenuação da geopolítica, mesmo que parcial? Os países aos poucos não estão caminhando para um campo de decisões coletivas, em que pelo menos nalgumas questões (tribunais internacionais, acordos comerciais, acordos de prevenção de degradação ambiental etc.) a soberania nacional se submete a decisões vinculadas a uma nascente “soberania mundial”, soberania essa construída com a força dos argumentos, dos interesses gerais da humanidade e não com a força das armas?
É bem verdade que no pós-segunda surgiu uma ordem fraturada com dois campos de interesses nítidos, duas potências bélicas à testa de visões ideológicas e sociais antagônicas (embora muitos traços comuns existissem), que impediu a retração da geopolítica, ao contrário, acirrou-a, o que o período da Guerra Fria expressou com a corrida armamentista de conteúdo nuclear, nas Guerras da Coréia, na crise dos mísseis em Cuba etc.
Mas, o declínio das sociedades socialistas, a aproximação política e econômica dos antagonistas da Guerra Fria (ex-URSS e EUA) não abriu um caminho definitivo para a “utopia” da ordem mundial, que refletiria os interesses da humanidade? Restam ainda fraturas inconciliáveis no quadro internacional que manterão ainda por muito tempo a geopolítica (a guerra espreitando com instância final e legítima)?
A nova ordem geográfica e a globalização econômica: seria incorreto referir-se aos fundamentos econômicos da segunda guerra mundial como associados, grosso modo, às disputas imperialistas, à luta pela repartição dos recursos e dos mercados? Isso não significa que num mundo marcado por disputas desse tipo, que redundaram em guerra, a liberdade de ação das empresas multinacionais, estava restringida a poucos territórios? E mesmo a amplitude comercial dos países era não muitíssimo mais limitada? Isso não quer dizer que o alcance geográfico das relações econômicas era quase que somente nacional e no máximo regional (conjunto de países, segmentos de continentes etc)? Uma questão chave para se discutir:
as condições do pós-guerra, no que tange às relações entre os países não permitiram um alargamento geográfico do contexto das relações econômicas? Corporações não ganharam força e desembaraço de atuação no planeta a ponto de ser melhor denominá-las como transnacionais (acima das nações)? Não representam elas uma força expressiva do que denominamos atualmente como globalização?
Um viés crítico a ação dessas corporações refere-se ao fato delas atuarem globalmente, constituir-se como reduto de interesses superpoderosos, porém sem qualquer tipo de controle. Os Estados nacionais as controlariam? Na maioria dos casos elas se associam aos Estados e os subordinam, dizem os críticos. Há instâncias globais, formada por um conjunto de representantes estatais e das sociedades civis organizadas capaz de impor limites a ação “transnacional” e “trans-social” dessas corporações?
A nova ordem geográfica e a perspectiva de uma sociedade global: para muitos a formação de uma sociedade global está caminhando, não somente exemplificada pela multiplicação de tribunais e instituições internacionais que examinam problemas que transcendem a soberania dos Estados-nação, mas testemunhada pela própria formação da União Européia, um alargamento da escala geográfica de todos os tipos de relação entre povos diferentes culturalmente falando, de passado terrível e de situações econômicas muito diferentes. As sociedade nacionais estariam se dissolvendo numa sociedade mais ampla a européia.
Outras iniciativas do gênero estariam se desenhando no futuro. Mas somente no quadro da reorganização política e territorial dos Estados-nação em direção a instituições mais amplas e generosas poderíamos ver indícios de uma futura sociedade mundial, ou algo parecido? Como desdobramento da segunda mundial não vimos surgir um entrelaçamento maior entre os povos? Movimentos pacifistas (em razão das guerras como as do Vietnã, por exemplo) não ganharam expressão mundial e ganharam o mundo sem expressar nenhuma nacionalidade específica? Não se multiplicaram e se diversificaram em torno de causas nobres e de expressão mundial (ambientalismo, contra a violação dos direitos humanos, etc.)?
Isso não está organizado em entidades não-governamentais, em fóruns, que se intercomunicam intensamente, o que a nova organização geográfica “mundial” possibilita com os desbloqueio da circulação (produto dos avanços tecnológicos, da diminuição do peso das fronteiras políticas etc)? Eis um tema fundamental para se discutir: estaria havendo realmente um avanço na direção da constituição de uma sociedade mundial? Quais as manifestações que podem ser vinculadas a essa construção?
O que será um mundo de verdade, que atenuaria a dimensão nacional, claro que sem desrespeitar as realidades locais e regionais que não desapareceriam, mas se beneficiariam em pertencer a quadros relacionais geográficos mais amplos? Se o final da segunda-guerra, de fato, criou algumas condições que indicam alguma construção nessa direção, aí realmente poderemos dizer que o mundo (a humanidade) mudou, ou está mudando na sua essência.



[1] Cf. Mark MAZOWER. Continente sombrio; a Europa no século XX. São Paulo, Cia das Letras, 2001.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

As ambições do "planeta China"

Jaime Oliva

A China sempre esteve no imaginário do ocidente, antes pela sua condição exótica, por suas diferenças, pelo inusitado. Agora, esse imaginário continua a ser alimentado, mas com uma abordagem muito distinta. A China está se aproximando de nosso mundo, em boa medida com os mesmos procedimentos, incorporando-se ao mundo global, e surfando um imenso crescimento econômico, que em vista da escala de sua população e de seus potenciais, continuará a ocorrer.
Será ela a maior potência mundial? Mas, se assim for, exercerá a mesma ampla influência no mundo que exerce os EUA? Bem, em alguma medida, parte do ocorrerá no mundo, nesse quadro da ascensão chinesa, não trará tantas novidades, pois a ascensão chinesa se dá em grande medida por sua adesão a modelos ocidentais. Na verdade, o que pode vir acontecer será um paradoxo. Um extraordinário impulso ocidentalizante no mundo, mas agora com um protagonista oriental. Aliás, não faltam paradoxos e situações inusitadas no caso chinês, e são eles que serão explorados nas sugestões de discussão a seguir.

Um primeiro aspecto importantíssimo a se notar sobre a grande transformação chinesa refere-se ao rompimento do seu isolamento geográfico, ou dito de melhor maneira: da ampliação de sua abertura para o mundo. No período em que a confrontação capitalismo e socialismo (cenário da Guerra Fria) possuía uma carga ideológica explosiva, esse país de regime socialista um pouco fora do modelo (com uma base camponesa superior à industrial) mantinha-se relativamente fora do cenário econômico internacional. Seu funcionamento econômico, sua economia planejada visava a auto-subsistência até onde isso era possível. S
erá que o crescimento econômico assim obtido era compatível de ser comparado com os parâmetros de uma econômica capitalista aberta para o mercado internacional, para as necessidades de consumo do indivíduo moderno etc.? E agora com os novos vínculos estabelecidos, pode-se dizer que está havendo uma transformação estrutural, dada pelo rompimento do isolamento geográfico, logo por sua vinculação ao mercado internacional, às novas necessidades de produção a um novo espaço econômico, que caminha para ser mundial? Não se deve admitir, que mais que números a nova China ostenta novas relações com o mundo, aliás, as grandes responsáveis pelo vigor desses novos números?
Contudo, uma questão importante se coloca: os bens chineses de exportação, que são sua grande força, não poderiam ser desenvolvidos e produzidos em grande escala, antes de tudo ao seu imenso mercado interno potencial? Em termos quantitativos resta alguma dúvida que o mercado interno poderia ser o dínamo inicial de processo? Mas, porque não é assim e só lentamente o mercado interno vai se constituindo (classe média ainda muito irrisória)? Será que não seria preciso uma grande transformação social interna para que sua população viesse a ser mercado? Transformação que deveria ir até o plano político? E que transformações concretas está havendo nesse plano?
De um modo geral, pouco coisa. Logo, essa economia de mercado está sustentada inicialmente e principalmente numa realidade de mercado que é externa. Daí que a principal ocorrência da China moderna foi a incorporação desse externo à sua vida econômica.
As previsões econômicas assim como as políticas feitas por profissionais dessas áreas costumam ser facilmente desmentidas pelo futuro. Na verdade, essas previsões não têm pecado muito mais por prever a repetição do presente no futuro, logo por dizer em que não haverá futuro? O futuro não pode guardar realmente transformações? Por exemplo: o que se diz agora da China dizia-se do Japão. Havia até uma piada sobre um americano que dormiu durante vinte anos a partir do final da década de 90 e quando acordou lá por 2015 foi o centro de Nova York e perguntou quanto era o preço de um cachorro-quente e o vendedor disse: 1 yen.
Tal seria o avanço japonês sobre o mundo, nessa era da globalização. Mas, não foi assim. Mesmo o Japão ainda possuindo uma economia sólida e de alta tecnologia (diferentemente da China) ela apresenta limitações. E entre essas, a principal é sua excessiva dependência do mercado externo, do espaço econômico que vai além de suas fronteiras. Será que o caso da China será o mesmo? Esse país não tem um espaço enorme para dentro para crescer? Mas que transformações serão necessárias para que isso ocorra?
É possível esse país se transformar numa moderna sociedade de consumo (mesmo que em moldes próprios) com o tipo de relação política existente? Como liberar numa sociedade a criatividade existente, que depende de livre iniciativa, de liberdade de expressão e pensamento numa sociedade controlada da forma tão brutal com técnicas de terrorismo totalitário (vejam com atenção de novo, o caráter aleatório, surpreendente da “justiça” dos dirigentes. Isso não mantêm as pessoas em constante situação de medo e insegurança? Eis uma característica do terror).
Sem a figura do individuo e dos direitos humanos poderá o bem-estar, que se associa em boa medida no acesso a bens de todos os tipos (o que é algo além do consumo banal, do consumismo), vingar num país como esse? O consumo, logo as dimensões do mercado interno, não ficará restrito a grupos privilegiados e ligados ao poder (e seus acólitos, seguidores acríticos)? Isso será suficiente para dar uma garantia interna ao crescimento econômico chinês? Ou todos as fichas continuarão investidas no espaço econômico externo? Isso não representará mais adiante crises inevitáveis nesse caminho, que acabarão derrubando os números da economia? Podemos afirmar que esse risco não existe? Afinal o mercado externo é tão estável assim?
Vale a pena por fim tratar de um outro aspecto grave da questão dos direitos humanos, que como vimos não é apenas uma questão humanitária, pois ela terá certamente repercussões na questão econômico mais ampla. Por que as nações ocidentais (em especial os EUA) são mais tolerantes com a China e muito menos com outros países que apresentam problemas com os direitos humanos? A velha resposta dos interesses econômicos que vêm a frente serve aqui, mas precisa ser qualificada.
No cálculo americano geopolítico (a política internacional que tem como base final a força militar) a China certamente representa menos perigo como parceiro econômico e político. No cálculo econômico mais ainda. O que representa Cuba nesses termos para os EUA? Não é exatamente o contrário? Sendo assim, não se sentem livres (assim como outras nações européias e ocidentais, Brasil incluso), mais à vontade, para debater as questões dos direitos humanos?
Isso não é uma desmoralização para a humanidade, saber que nosso estágio civilizatório ainda é inteiramente dependente de interesses geopolíticos (o domínio militar, como meio de manutenção de hegemonia, é um horizonte projetado pelos “futuristas” para o futuro) e da lógica econômica? Por outro lado: não é uma cegueira não notar que o próprio horizonte econômico e estabilidade geopolítica estará ameaçada num futuro breve (ou mesmo agora) se outros valores não passarem a contar na vida das nações? Que não haverá chances de caminhar-se para qualquer coisa que se aproxime de uma sociedade (um conserto) mundial nessas condições?

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Fé no punho

Jaime Oliva

Participar de campanhas humanitárias e usar símbolos que identificam e divulgam essa participação é cada vez mais comum no mundo contemporâneo. Mas, o que representam esses símbolos quando utilizados sem que a participação nas campanhas seja a razão do uso. Esse fenômeno existe numa escala bem visível, tal como o retratado na reportagem presente no link http://veja.abril.com.br/060405/p_079.html , mas se manifesta de várias outras formas. Identificar as diversas formas de proliferação de uso de símbolos, nas quais os símbolos são mais importantes do que o que representavam originalmente, e buscar o que eles de fato estão representando será alvo aqui de algumas reflexões, algumas em formato de prática pedagógica em sala de aula.

O (A) professor (a) para início das atividades pode inquirir seus alunos sobre o uso de bottons ou outros símbolos que eventualmente eles utilizam, como por exemplo, camisas de agremiações esportivas, ou de partidos políticos, movimentos sociais e até mesmos símbolos religiosos. Inclusive as tatuagens podem ser objeto dessa pesquisa. Uma lista dos símbolos e de seus significados (os declarados pelos usuários) pode ser providenciada na lousa. E quando o usuário não declarar nenhum significado, deve ser perguntado a ele porque usa o símbolo.
Essa lista inicial pode servir como material interessante para visualizar-se quanto os significados e as razões do uso podem ser mais diversos e difusos do que imaginamos a primeira vista. Essa constatação, caso haja, deve ser bem notada para que em seguida os estudantes leiam a matéria no link indicado.

O que pode estar por trás do desejo de usar símbolos que originalmente foram criados para identificar os participantes e apoiadores de campanhas, de causas, de coletividades, sem que essa identificação exista? Não será mais do participar de qualquer coisa que está em pauta o desejo, em si, de se identificar e ser identificado? Alguns questionamentos e reflexões podem ser feitos visando explorar essa hipótese?
Um fenômeno de muita visibilidade em nosso meio e que pode servir para traçar um paralelo com o tema da reportagem são as torcidas uniformizadas de equipes de futebol. A princípio, elas existem, para uniformizadas (a camisa é o símbolo) prestigiarem seus clubes nos dias de competição. Mas, não é segredo para ninguém que o uso desse símbolo ultrapassa essas funções originais.
Não é fato que vem se desenvolvendo uma paixão superior do membro da torcida pelo seu agrupamento se comparada à paixão que ele possui pelo próprio clube e, mesmo, pelo esporte em si? Não é fato também que essas torcidas vem se transformando em agrupamentos sociais/comunitários que extrapolam suas atividades originais, ingressando em atividades de carnaval, por exemplo? Esses grupos não organizam pessoas que neles encontram um tipo de sociabilidade, uma coesão e identificação a uma coletividade, que de outra forma elas não possuíam?
Não temos também notícias sobre as rivalidades (por vezes desdobrando-se em confrontos físicos) entre esses grupos, cuja razão está descolada da rivalidade esportiva e se associa muito mais a representações de fidelidade com o próprio grupo, tais como a valentia, a coragem, o sacrifício etc? Não é um típico caso no qual a representação (a torcida uniformizada de futebol) se desvinculou, de algum modo, do representado (o time do futebol) e passou a ser principalmente um grupo de identificação social, tal como, possivelmente, está acontecendo com os adolescentes que compram pulseiras para se identificar e serem identificados, utilizando a causa como pretexto (ou até desconhecendo-na), embora isso se dê de forma mais difusa, não tão clara?
Não é provável que isso também esteja acontecendo de outras formas? Os diversos agrupamentos religiosos que proliferam em grande proporção nas grandes metrópoles brasileiras não estariam também respondendo, nalguma medida, a essa necessidade de pertencimento, de identificação social de indivíduos que vivem em situações de desagregação do tecido social? O cardápio de opções aos jovens, nesse caso, é múltiplo e variado e atende as diversas faixas de renda e também as diversas posições sociais em que se encontram esses jovens.
Uma boa expressão que resvala nesse fenômeno talvez seja a de “rebelde sem causa”. Essa nos dá oportunidade de explorar algo muito afirmado contemporaneamente: diferentemente, por exemplo da geração de 1968, os jovens e adolescentes atuais formam grupos de identificação desfibrados, quer dizer: não são ligados à causas, são desideologizados, despolitizados etc. São coesionados por modas, por bens de consumo, controlados pelo mercado que “manipularia” em seu benefício a necessidade dos jovens pertencerem a algo, se rebelar, se identificar.
Dessa posição, um pouco comum, pode se propor uma discussão em dois tempos: 1. De fato o jovem atual, apesar dessa necessidade social de pertencimento, é desligado de causas, e a única causa que defende é a sua mesmo?; 2. Por que no numa sociedade como a moderna esses símbolos de pertencimento (associados à moda, à causas, à necessidade de sociabilidade etc.) proliferam na proporção que notamos? Haveria uma insuficiência social nas relações cotidianas que facilitaria o surgimento de agrupamentos (mais ou menos difusos) comunitários, relativamente, apartados do todo social?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A justiça é cega


Jaime Oliva
Numa importante entrevista o escritor e advogado americano Scott Turow http://veja.abril.com.br/300403/entrevista.html oferece uma oportunidade interessante para se discutir a justiça nas sociedades modernas. Nada mais complexo e difícil para ser operado em nosso mundo. Mas, ao mesmo tempo, nada mais indispensável, apesar de todos os problemas gravíssimos que a construção da justiça nas relações sociais ainda contém, em especial nos países mais pobres (o que não quer dizer que países ricos como os EUA – esse particularmente – não apresentem situações impressionantes de irracionalidade no campo da justiça).
Essa contradição entre a necessidade da justiça e suas dificuldades (algumas criadas por ela mesma, por seu corpo de leis e forma de operação) aparece nas palavras de Turow quando ele afirma que as leis não tornam necessariamente a vida mais razoável, ao mesmo tempo em que se queixa e entende como perturbadoras as violações ao Estado de Direito que têm ocorrido atualmente nos EUA sob a presidência Bush. Refletir constantemente sobre essa contradição, ou melhor tensão, é algo fundamental nas sociedades modernas para poder administrá-la de maneira aceitável, já que muito provavelmente não é possível extirpá-la.

Moral, prática e ética: a organização do Estado moderno, forma básica de organização da vida no mundo moderno, pode ser apreendida em três dimensões: o Estado socioeconômico (a dimensão que atua diretamente nas questões materiais de provimento da sociedade); o Estado político (a dimensão que regula as relações de poder e cujo objetivo é a busca da legitimidade nessas relações); e o Estado de Direito (a dimensão que rege as relações sociais sob o império da lei, como alternativa ao uso da força e da violência como elemento regulador das relações sociais de todas as ordens).
O Estado de Direito é a dimensão que implementa, expande e exercita a justiça. Mas o que é a justiça? Como ela se constrói? No que ela se baseia para se constituir nas sociedades modernas? A discussão aqui é longa, muita desenvolvida e complexa. Vale a pena sempre estudar isso, mas aqui queríamos destacar uma passagem, uma opinião bastante interessante do romancista entrevistado: ele é contra a pena de morte não por motivos morais, ou religiosos, e sim porque ela não funciona... “é desprovida de qualquer utilidade social”.
E ele fala com conhecimento de causa, não só por ser advogado, mas por estudar o sistema jurídico e policial de uma sociedade que pratica a pena de morte. Não é uma suposição se vai funcionar ou não, como se faz no Brasil. Ele se baseia, certamente, em dados e estudos para afirmar isso. Mas da afirmação de Turow tiramos algumas questões fundamentais:
1. as leis, as punições para suas transgressões, o corpo geral de justiça deve ser erigido sobre preceitos morais (o que é certo ou aceitável, o que é errado e inaceitável segundo conjunto de regras e costumes – que inclui sua religiosidade - de um grupo social) ou sobre preceitos práticos (o que funciona ou não)?
2. Somente esse par (moral versus prática) resume a questão da constituição básica da justiça? Há uma questão básica para mostrar o quanto é problemática a construção das leis de modo exclusivamente vinculado a valores morais. Uma sociedade moderna, caracteriza-se, entre outras coisas, na emergência do indivíduo, elemento autonômo, com direitos totais de opinião. E com direitos de exercer seus valores morais, que podem não coincidir com de outras pessoas. Qualquer um de nós pode fazer listas de valores morais distintos em nossa sociedade em relação a praticamente tudo, desde a vida cotidiana e privada à vida pública.
Na própria polêmica sobre a pena de morte no Brasil, notamos o confronto de posições cujos valores morais são opostos. Países nos quais as leis baseiam-se em valores morais extraídos de uma religião (em geral são extraídos de uma dada leitura das tradições da religião) costumam ter leis opressoras e injustas, em especial para aqueles que não seguem os preceitos daquela religião. Logo, se esses comentários são válidos as leis não podem basear-se num modelo de moral, visto que numa sociedade moderna podem existir vários, e todos possuem o direito de exercê-los.
Num quadro assim o que é uma lei e uma “justiça justa”? O que é a verdade da justiça? Respeitar a diversidade de valores morais e não criminalizar a moral diferente é algo que o estado de direito moderno deve fazer e isso não é uma postura moral e sim ética e justa. Na verdade pode-se incorporar essa postura ética como um valor moral, mas ela é antes de tudo ética. Eis uma expressão chave para conduzir as reflexões: a ética.
Turow não tem problemas morais quanto à aplicação da pena de morte, caso ela funcionasse, mas tem problemas éticos (que nele até viraram problema moral) contra a instrumentalização injusta dessa pena contra os negros americanos, tal como ele argumenta na entrevista, oferecendo alguns dados. Logo, é por meio do enriquecimento do sentido de ética que a discussão da justiça pode ser melhor encaminhada.
A moral é mais estreita e inaplicável para toda a sociedade. A moral é mais tensa e emocionada, tem dificuldade de compreender o outro, e é mais vingativa e preconceituosa. Um exemplo interessante que pode ser apanhado da literatura, para fazer justiça à entrevista que é de um romancista, é o livro (que também virou filme) O Nome da Rosa. Nessa história pode ser ver a moral religiosa protagonizando uma imensa injustiça. A ética é mais prática e desapaixonada, busca a eficiência e reconhece o outro, sem ódio a princípio.
Como funciona a justiça com base na ética: poderia ser argumentado que o respeito às diversas morais impede um padrão, uma justiça aplicável a todos. Vamos respeitar um agrupamento que resolve seus conflitos com violência, a partir de suas próprias leis? Não é melhor impor um único padrão de lei do que ter leis frágeis e pulverizadas que estão procurando respeitar e abraçar todos os direitos humanos e que acabam favorecendo os bandidos? Essas questões estão sempre presentes nos debates contemporâneos, em especial nos momentos em que violência e os crimes se multiplicam. Qual a solução ética para essas questões?
Em primeiro lugar é preciso assinalar que diante da complexidade de situações, das rápidas e enormes transformações sociais, tecnológicas etc, das dificuldades imensas de convívio ainda existentes entre os seres humanos diferentes, das dificuldades operacionais da justiça, que a justiça, a correção e a verdade perfeitas são mesmo inalcançáveis, conforme opina Turow.
Mas apesar disso temos necessidade dessa “justiça injusta”, que deve ser construída com determinados parâmetros: o corpo de leis não pode violentar os diversos direitos e morais. Logo, ninguém pode matar, porque isso ferirá valores morais presentes na sociedade (e se pertenço a uma sociedade tudo que nela ocorre me atinge de algum modo); o direito de usar a violência dentro de estritas regras será transferido para o Estado e será proibido seu uso nas relações sociais.
O direito de julgar também. Só esses dois parâmetros demonstram que é possível um corpo comum que deve atender a todos. Não podem valer valores morais específicos que definem que uns têm mais direito às leis que outros. A ética incorporada no Estado não pode conter exceções. A compreensão dessa necessidade de abrangência para não ferir direitos diminui a intolerância quanto à própria prática da justiça.
Não é uma intolerância achar que criminosos e bandidos não devem ter direito à defesa, nem direito a advogados etc? Aliás, a justiça praticada com ética e não com valores morais pulverizados é que define quem é bandido e criminoso. Não é melhor termos na mão uma justiça imperfeita em função de tudo que ele pretende equacionar do que uma justiça simples baseada numa moral simples, porém opressora e injusta com a complexidade humana.
Para assistir e refletir: Além do filme ou livro O Nome da Rosa há um filme interessantíssimo que passou nos cinemas brasileiros e na televisão, e que tem fitas disponíveis em locadores chamado Kadosh, que serve muito bem para discutir justiça, moral e ética: é uma história de religiosos judeus ortodoxos, na qual as mulheres tem pouca autonomia e se submetem aos hábitos e ritos religiosos protagonizados pelos homens. A transgressão é uma gravíssima falha moral e imperdoável. Num quadro assim a violência contra uma transgressão da mulher é uma consequência inevitável. Isso ocorre no filme, mas as leis éticas (laicas, sem base na religião) não permitem a violência.
Os ortodoxos até lamentam numa cena que eles não tenham o poder político para impor suas leis a todos, quer dizer: sua moral. Esse filme contrapõem essas duas situações, e por isso ilustra bem um aspecto chave da justiça nas sociedades modernas.