quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O que pode e para que serve uma CPI

Jaime Oliva

Talvez os mais jovens não tenham se dado conta, mas desde que o Brasil deixou de ser um regime militar (15 de março de 1985), e ingressou numa fase que busca se orientar por princípios democráticos. E nessa fase as entranhas de nossas práticas políticas foram expostas muitas vezes. Foram crises políticas muito sérias que chegaram a resultar na cassação de mandato de um presidente eleito (Fernando Collor). Por várias vezes, o noticiário na imprensa destacou cassações e mais cassações de deputados. Em geral, o motivo dominante era a corrupção, que se dava pelas mais diversas formas.
Diferentemente do período militar no qual as cassações existentes tinham, basicamente, outra motivação e eram decididas e executadas pelo poder militar que estava no governo (no poder executivo), na fase democrática as cassações são iniciativa das Assembleias de deputados e senadores, o que no Estado-nação moderno denomina-se poder legislativo. E na maioria das vezes as cassações são decididas ao término dos trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito, as conhecidas e familiares CPIs. Compreender o que são essas comissões e seu papel no quadro político brasileiro será objeto dessa atividade. E desde já que fique claro que esse papel é bem mais complexo do que parece. Elas se tornaram operadores importantes e polêmicos no quadro político brasileiro.
Por exemplo: é comum assistirmos quedas de braço entre forças políticas pela instalação e controle de uma CPI no Congresso Nacional. Os lados em disputa sempre têm parecer contrário sobre a finalidade e os benefícios das CPIs em geral, isso, claro dependendo da posição em que cada lado se encontra: se governo ou oposição. Ao menos essa é a posição de um prestigioso deputado em entrevista à Veja do dia 15 de junho de 2005: “ [...] o que nos leva a uma situação em que, em 2006, restará só perguntar de quem será a vez de pedir a CPI – e de quem será a vez de abafá-la”. (Deputado Fernando Gabeira).
Compreender as funções destinadas ao nosso poder legislativo de realizar inquéritos (investigações) que podem condenar pessoas, chegando mesmo a depor presidentes exige que se tenha sob controle em que gênero de organização institucional se organiza o poder legislativo. Se estrutura no interior do Estado-nação moderno, construção que supera as formas estatais anteriores que se assentava nas tradições monárquicas.
Diferentemente, no mundo moderno o Estado será uma instituição impessoal e concentrará o poder de agir e terá como responsabilidade organizar a nação, a vida política, a vida econômica e as regras de convivência social. Governos, deputados, senadores, vereadores serão apenas representantes momentâneos desse poder político e obterão sua legitimidade por terem origem na vontade da população. Por meio da democracia representativa. Para dar conta de suas responsabilidades o Estado precisa de poder, ou melhor de poderes. Esses poderes são os seguintes: legislativo, judiciário e executivo.
Uma visão ideal afirma o equilíbrio entre esses poderes, mas na vida real dos Estados nacionais (e no Brasil isso é claro) esse equilíbrio não ocorre. Há, em geral, um desequilíbrio que favorece o poder executivo, o que denominamos governo. No quadro político brasileiro o que eventualmente tem equilibrado esses poderes é o instituto da CPI no poder legislativo, porque trata-se uma comissão que tem o poder efetivo de investigar as ações do poder executivo de uma maneira mais incisiva do que as práticas rotineiras no poder legislativo. Embora, recentemente as CPIs estejam mais frágeis.
Além da função legislativa (de criação de leis; aprovação ou reprovação de projetos propostos pelo poder executivo) o poder legislativo também possui a função fiscalizadora dos outros poderes e da administração pública em geral. Para exercer essas funções além das votações no plenário (reunião de todos os parlamentares eleitos) o poder legislativo (por exemplo, a Câmara Federal de Deputados) possui uma série de comissões ordinárias que dão conta de vários procedimentos preparatórios e também tomam algumas decisões segundo o regimento das casas parlamentares. Aliás, uma atividade interessante a ser proposta podia ser a pesquisa sobre como são os regimentos do Senado Federal e Câmara dos Deputados, pois neles se encontra boa parte da lógica do funcionamento desse poder e, muito raramente, esse aspecto vem a público. Mas voltando: a Câmara de Deputados possui comissões ordinárias e fixas, como por exemplo: a Comissão de Orçamento, a Comissão de Ética etc.
Essas comissões tem poder de fiscalização e controle, mas com algumas limitações, que fazem parte da regra do jogo. No entanto, quando parte dos parlamentares (pode ser um apenas) entende que um tema qualquer merece uma investigação especial, com menores restrições ele pode propor a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). No caso da Câmara Federal é necessário que 1/3 dos Deputados assinem o pedido de uma CPI para que ele comece a caminhar. A CPI, portanto, é uma comissão momentânea (com prazo para iniciar, prazo para acabar) que possui meios muito eficazes de investigação (pode quebrar sigilos bancários de qualquer um, por exemplo) e que se organiza em torno de um tema, de uma questão, que os parlamentares entenderam não ser investigada de maneira adequada por outros meios. Assim, desse modo, uma CPI é um momento em que o poder legislativo exerce um poder mais elevado do que em momentos rotineiros.
Não seria essa a razão para se afirmar, que ao menos nessa situação, o poder legislativo fica em pé de igualdade com o poder executivo? A resposta será positiva, principalmente, se o investigado no caso for o executivo. E aí reside algumas questões: quem normalmente toma iniciativa para propor algum tipo de investigação sobre o poder executivo? Quem se opõe? Por quê? Se os poderes são em tese independentes por que parlamentares da mesma força política do presidente eleito jamais apoiam CPIs? Eles não teriam também o dever de fiscalizar o executivo usando os instrumentos mais adequados para cada situação? Estaria certo o deputado Gabeira ao afirmar que o parlamentar que apóia o governo trabalha contra a aprovação de CPIs e o parlamentar que se opõe sempre defende as CPI sobre o governo?
Esse automatismo não desmoralizaria o instituto da CPI? Isso não nos leva à grande questão: as CPIs de instrumento legítimo de um parlamento não passa de modo a ser apenas um instrumento político (que dizer atende interesses políticos de forças específicas e não interesses públicos)? O fato da mídia, logo, de algum modo, a opinião publica, expor mais largamente os trabalhos parlamentares quando ocorre uma CPI colabora para que ela seja direcionada mais para o interesse público?Tendo como referência as CPIs mais importantes que ocorreram ultimamente (pode pesquisar a respeito): caso Collor, dos anões do orçamento, do Banestado, do Crime organizado – narcotráfico, etc, pode-se afirmar que o que estava predominando no caso eram interesses políticos, mais do que interesses públicos?
Para saber mais
A democracia representativa
Democracia representativa significa que as deliberações coletivas, que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade (...) Um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais etc. (Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia)
A concentração de poder no Executivo
Fenômeno comum no mundo moderno, sem dúvida a maior dose de poder político imediato está concentrada no chamado poder executivo. Ou, se quiser, no governo [...] no caso brasileiro a centralização de poder no governo ultrapassou todos os limites. A alegação [mais comum] que sustenta essa posição, é de que a Constituição de 1988 teria tornado o país ingovernável. Com isso, abrem-se frentes [de legalidade discutível] de controle do poder executivo sobre os demais poderes e forças políticas. Vejamos dois exemplos.
1.O Poder executivo federal (o governo) envia anualmente para aprovação no Congresso nacional o orçamento da União (quanto e onde vai se gastar no ano). Os parlamentares não somente votam, aprovando ou não, o orçamento, como podem incluir emendas definindo onde parte do dinheiro deve ser gasto. Essas emendas são, em geral, propostas de gastos nos redutos eleitorais de cada parlamentar.Após a inclusão de sua emenda no orçamento, o parlamentar começa a se empenhar para que essa verba seja liberada. Essa liberação depende do poder executivo que, dessa maneira, acaba por controlar e dirigir conforme seus interesses programáticos a vida política do legislativo. Em troca de favores regionais, aprova medidas políticas de seu interesse, eliminando boa parte da resistência e autonomia do Congresso Nacional.
2. Outro fenômeno de submissão dos poderes legislativo e judiciário ao executivo é o recurso das chamadas medidas provisórias. Mecanismo herdado do regime autoritário à disposição do poder executivo federal, com elas o governo legisla à vontade, mudando regras econômicas e de outras atividades “provisoriamente”. O Congresso Nacional tem um prazo de um mês para aprová-la ou rejeitá-la. Enquanto isso, ela entra em vigor, alterando as relações na vida real. Caso o parlamento não examine a medida a tempo, ela é reeditada com pequenas alterações e assim sucessivamente. Por outro lado, caso o Congresso rejeite a medida, ela é transformada e também reeditada, prevalecendo mais um tempo. Esse é um caso no qual a vontade do executivo é lei[...] Eis uma das razões do fracasso da democracia representativa no Brasil. Nossos governantes [do executivo] possuem mais poder do aquele que lhes foi dado por nós. (Adaptado de Jaime Oliva e Roberto Giansanti. Espaço e Modernidade. S.P. Atual Editora.)

Nenhum comentário: