terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A justiça é cega


Jaime Oliva
Numa importante entrevista o escritor e advogado americano Scott Turow http://veja.abril.com.br/300403/entrevista.html oferece uma oportunidade interessante para se discutir a justiça nas sociedades modernas. Nada mais complexo e difícil para ser operado em nosso mundo. Mas, ao mesmo tempo, nada mais indispensável, apesar de todos os problemas gravíssimos que a construção da justiça nas relações sociais ainda contém, em especial nos países mais pobres (o que não quer dizer que países ricos como os EUA – esse particularmente – não apresentem situações impressionantes de irracionalidade no campo da justiça).
Essa contradição entre a necessidade da justiça e suas dificuldades (algumas criadas por ela mesma, por seu corpo de leis e forma de operação) aparece nas palavras de Turow quando ele afirma que as leis não tornam necessariamente a vida mais razoável, ao mesmo tempo em que se queixa e entende como perturbadoras as violações ao Estado de Direito que têm ocorrido atualmente nos EUA sob a presidência Bush. Refletir constantemente sobre essa contradição, ou melhor tensão, é algo fundamental nas sociedades modernas para poder administrá-la de maneira aceitável, já que muito provavelmente não é possível extirpá-la.

Moral, prática e ética: a organização do Estado moderno, forma básica de organização da vida no mundo moderno, pode ser apreendida em três dimensões: o Estado socioeconômico (a dimensão que atua diretamente nas questões materiais de provimento da sociedade); o Estado político (a dimensão que regula as relações de poder e cujo objetivo é a busca da legitimidade nessas relações); e o Estado de Direito (a dimensão que rege as relações sociais sob o império da lei, como alternativa ao uso da força e da violência como elemento regulador das relações sociais de todas as ordens).
O Estado de Direito é a dimensão que implementa, expande e exercita a justiça. Mas o que é a justiça? Como ela se constrói? No que ela se baseia para se constituir nas sociedades modernas? A discussão aqui é longa, muita desenvolvida e complexa. Vale a pena sempre estudar isso, mas aqui queríamos destacar uma passagem, uma opinião bastante interessante do romancista entrevistado: ele é contra a pena de morte não por motivos morais, ou religiosos, e sim porque ela não funciona... “é desprovida de qualquer utilidade social”.
E ele fala com conhecimento de causa, não só por ser advogado, mas por estudar o sistema jurídico e policial de uma sociedade que pratica a pena de morte. Não é uma suposição se vai funcionar ou não, como se faz no Brasil. Ele se baseia, certamente, em dados e estudos para afirmar isso. Mas da afirmação de Turow tiramos algumas questões fundamentais:
1. as leis, as punições para suas transgressões, o corpo geral de justiça deve ser erigido sobre preceitos morais (o que é certo ou aceitável, o que é errado e inaceitável segundo conjunto de regras e costumes – que inclui sua religiosidade - de um grupo social) ou sobre preceitos práticos (o que funciona ou não)?
2. Somente esse par (moral versus prática) resume a questão da constituição básica da justiça? Há uma questão básica para mostrar o quanto é problemática a construção das leis de modo exclusivamente vinculado a valores morais. Uma sociedade moderna, caracteriza-se, entre outras coisas, na emergência do indivíduo, elemento autonômo, com direitos totais de opinião. E com direitos de exercer seus valores morais, que podem não coincidir com de outras pessoas. Qualquer um de nós pode fazer listas de valores morais distintos em nossa sociedade em relação a praticamente tudo, desde a vida cotidiana e privada à vida pública.
Na própria polêmica sobre a pena de morte no Brasil, notamos o confronto de posições cujos valores morais são opostos. Países nos quais as leis baseiam-se em valores morais extraídos de uma religião (em geral são extraídos de uma dada leitura das tradições da religião) costumam ter leis opressoras e injustas, em especial para aqueles que não seguem os preceitos daquela religião. Logo, se esses comentários são válidos as leis não podem basear-se num modelo de moral, visto que numa sociedade moderna podem existir vários, e todos possuem o direito de exercê-los.
Num quadro assim o que é uma lei e uma “justiça justa”? O que é a verdade da justiça? Respeitar a diversidade de valores morais e não criminalizar a moral diferente é algo que o estado de direito moderno deve fazer e isso não é uma postura moral e sim ética e justa. Na verdade pode-se incorporar essa postura ética como um valor moral, mas ela é antes de tudo ética. Eis uma expressão chave para conduzir as reflexões: a ética.
Turow não tem problemas morais quanto à aplicação da pena de morte, caso ela funcionasse, mas tem problemas éticos (que nele até viraram problema moral) contra a instrumentalização injusta dessa pena contra os negros americanos, tal como ele argumenta na entrevista, oferecendo alguns dados. Logo, é por meio do enriquecimento do sentido de ética que a discussão da justiça pode ser melhor encaminhada.
A moral é mais estreita e inaplicável para toda a sociedade. A moral é mais tensa e emocionada, tem dificuldade de compreender o outro, e é mais vingativa e preconceituosa. Um exemplo interessante que pode ser apanhado da literatura, para fazer justiça à entrevista que é de um romancista, é o livro (que também virou filme) O Nome da Rosa. Nessa história pode ser ver a moral religiosa protagonizando uma imensa injustiça. A ética é mais prática e desapaixonada, busca a eficiência e reconhece o outro, sem ódio a princípio.
Como funciona a justiça com base na ética: poderia ser argumentado que o respeito às diversas morais impede um padrão, uma justiça aplicável a todos. Vamos respeitar um agrupamento que resolve seus conflitos com violência, a partir de suas próprias leis? Não é melhor impor um único padrão de lei do que ter leis frágeis e pulverizadas que estão procurando respeitar e abraçar todos os direitos humanos e que acabam favorecendo os bandidos? Essas questões estão sempre presentes nos debates contemporâneos, em especial nos momentos em que violência e os crimes se multiplicam. Qual a solução ética para essas questões?
Em primeiro lugar é preciso assinalar que diante da complexidade de situações, das rápidas e enormes transformações sociais, tecnológicas etc, das dificuldades imensas de convívio ainda existentes entre os seres humanos diferentes, das dificuldades operacionais da justiça, que a justiça, a correção e a verdade perfeitas são mesmo inalcançáveis, conforme opina Turow.
Mas apesar disso temos necessidade dessa “justiça injusta”, que deve ser construída com determinados parâmetros: o corpo de leis não pode violentar os diversos direitos e morais. Logo, ninguém pode matar, porque isso ferirá valores morais presentes na sociedade (e se pertenço a uma sociedade tudo que nela ocorre me atinge de algum modo); o direito de usar a violência dentro de estritas regras será transferido para o Estado e será proibido seu uso nas relações sociais.
O direito de julgar também. Só esses dois parâmetros demonstram que é possível um corpo comum que deve atender a todos. Não podem valer valores morais específicos que definem que uns têm mais direito às leis que outros. A ética incorporada no Estado não pode conter exceções. A compreensão dessa necessidade de abrangência para não ferir direitos diminui a intolerância quanto à própria prática da justiça.
Não é uma intolerância achar que criminosos e bandidos não devem ter direito à defesa, nem direito a advogados etc? Aliás, a justiça praticada com ética e não com valores morais pulverizados é que define quem é bandido e criminoso. Não é melhor termos na mão uma justiça imperfeita em função de tudo que ele pretende equacionar do que uma justiça simples baseada numa moral simples, porém opressora e injusta com a complexidade humana.
Para assistir e refletir: Além do filme ou livro O Nome da Rosa há um filme interessantíssimo que passou nos cinemas brasileiros e na televisão, e que tem fitas disponíveis em locadores chamado Kadosh, que serve muito bem para discutir justiça, moral e ética: é uma história de religiosos judeus ortodoxos, na qual as mulheres tem pouca autonomia e se submetem aos hábitos e ritos religiosos protagonizados pelos homens. A transgressão é uma gravíssima falha moral e imperdoável. Num quadro assim a violência contra uma transgressão da mulher é uma consequência inevitável. Isso ocorre no filme, mas as leis éticas (laicas, sem base na religião) não permitem a violência.
Os ortodoxos até lamentam numa cena que eles não tenham o poder político para impor suas leis a todos, quer dizer: sua moral. Esse filme contrapõem essas duas situações, e por isso ilustra bem um aspecto chave da justiça nas sociedades modernas.

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