segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A ordem pós-segunda guerra

Jaime Oliva

As referências ao período do pós-segunda mundial não são apenas de celebração do fim de um conflito monstruoso que levou a morte e a infelicidade para várias dezenas de milhões de pessoas, atingindo diretamente e indiretamente mais de duas gerações de pessoas não apenas na Europa. Trata-se de um marco cujos desdobramentos, complexos por sinal, encontram-se na base da produção, mais do que uma nova ordem internacional, de uma nascente e inédita ordem mundial, algo que, nalguma medida, ultrapassa as relações convencionais entre nações soberanas.

Na ciência geográfica, por exemplo, identifica-se com clareza que no pós-segunda guerra uma nova ordem geográfica, essencialmente distinta da anterior se estabeleceu. E essa nova ordem seria a condição para a chamada globalização, assim como permitiria também construir uma globalização alternativa à globalização dominante. Discutir o perfil dessa nova ordem mundial herdeira direta do que resultou da segunda guerra será o objeto das reflexões e atividades que serão aqui sugeridas.

O historiador britânico Mark Mazower apresenta a Europa do século XX como um perigoso laboratório de experiências sociais – como um continente sombrio[1], expressão incomum para referir-se ao continente que foi o berço da civilização ocidental e da democracia. De fato, o adjetivo não é exagerado por tudo que significou as guerras mundiais, a experiência nazista e a stalinista e as ações imperialistas noutros continentes.

Mas a ordem nova que se apresenta no mundo e que, se comparada ao passado, apresenta traços civilizatórios superiores, tem na Europa um de seus principais protagonistas. Isso não quer dizer que vivemos agora no paraíso. A ordem atual ainda muito pouco compreendida apresenta um rol de problemas e injustiças sociais de todos os gêneros, ainda por ser resolvido. Uma análise que vise alguns ângulos dessa ordem pode nos aproximar dos problemas:
A atenuação da geopolítica
: a geopolítica é uma prática presente na ordem internacional, mas uma prática dos Estados nacionais. Uma prática da soberania nacional. Essa palavra é muito bem vista, não é mesmo? Não seria porque ela estaria associada à autonomia e a liberdade de um povo? Ao domínio de um território próprio que é indevassável? Mas, poderíamos concluir que há uma contrapartida complicada nessa formulação da soberania. Vejamos: a soberania é a base da geopolítica, é a razão da existência da estrutura militar de cada país.
Afinal, é obrigação de um Estado soberano defender os interesses do seu povo independente dos interesses dos outros. Na questão atual do Iraque no cenário da ONU, uma instância política do conjunto das nações surgida no pós-guerra, a posição dos EUA foi, a rigor derrotada. Mas, apesar de pertencer (e até ser o principal sustentáculo financeiro da ONU) a ONU, de ser um de seus fundadores principais, os EUA colocaram sua soberania acima das posições que se construíram nas Nações Unidas.
A soberania nacional, nesse caso, não reconhece e nem se submete à existência de decisões na esfera global. E pode, entre outras razões, não fazê-lo, em razão de sua força militar. Não vale aqui a força, a violência, a capacidade de guerrear? A geopolítica define-se como a ação política em escala internacional, que em última instância faz uso de uma força não política: a guerra, mesmo que virtualmente.
Mas, a pergunta a ser feita que pode gerar uma boa discussão vem do final da segunda guerra, afinal, como a própria reportagem da Veja destaca, a União Européia é constituída de por parceiros que há sessenta anos trucidaram-se mutuamente no século XX. Eis a grande questão, que poderia estar estabelecendo um novo marco civilizatório de verdade para a humanidade:
Não estaria havendo uma atenuação da geopolítica, mesmo que parcial? Os países aos poucos não estão caminhando para um campo de decisões coletivas, em que pelo menos nalgumas questões (tribunais internacionais, acordos comerciais, acordos de prevenção de degradação ambiental etc.) a soberania nacional se submete a decisões vinculadas a uma nascente “soberania mundial”, soberania essa construída com a força dos argumentos, dos interesses gerais da humanidade e não com a força das armas?
É bem verdade que no pós-segunda surgiu uma ordem fraturada com dois campos de interesses nítidos, duas potências bélicas à testa de visões ideológicas e sociais antagônicas (embora muitos traços comuns existissem), que impediu a retração da geopolítica, ao contrário, acirrou-a, o que o período da Guerra Fria expressou com a corrida armamentista de conteúdo nuclear, nas Guerras da Coréia, na crise dos mísseis em Cuba etc.
Mas, o declínio das sociedades socialistas, a aproximação política e econômica dos antagonistas da Guerra Fria (ex-URSS e EUA) não abriu um caminho definitivo para a “utopia” da ordem mundial, que refletiria os interesses da humanidade? Restam ainda fraturas inconciliáveis no quadro internacional que manterão ainda por muito tempo a geopolítica (a guerra espreitando com instância final e legítima)?
A nova ordem geográfica e a globalização econômica: seria incorreto referir-se aos fundamentos econômicos da segunda guerra mundial como associados, grosso modo, às disputas imperialistas, à luta pela repartição dos recursos e dos mercados? Isso não significa que num mundo marcado por disputas desse tipo, que redundaram em guerra, a liberdade de ação das empresas multinacionais, estava restringida a poucos territórios? E mesmo a amplitude comercial dos países era não muitíssimo mais limitada? Isso não quer dizer que o alcance geográfico das relações econômicas era quase que somente nacional e no máximo regional (conjunto de países, segmentos de continentes etc)? Uma questão chave para se discutir:
as condições do pós-guerra, no que tange às relações entre os países não permitiram um alargamento geográfico do contexto das relações econômicas? Corporações não ganharam força e desembaraço de atuação no planeta a ponto de ser melhor denominá-las como transnacionais (acima das nações)? Não representam elas uma força expressiva do que denominamos atualmente como globalização?
Um viés crítico a ação dessas corporações refere-se ao fato delas atuarem globalmente, constituir-se como reduto de interesses superpoderosos, porém sem qualquer tipo de controle. Os Estados nacionais as controlariam? Na maioria dos casos elas se associam aos Estados e os subordinam, dizem os críticos. Há instâncias globais, formada por um conjunto de representantes estatais e das sociedades civis organizadas capaz de impor limites a ação “transnacional” e “trans-social” dessas corporações?
A nova ordem geográfica e a perspectiva de uma sociedade global: para muitos a formação de uma sociedade global está caminhando, não somente exemplificada pela multiplicação de tribunais e instituições internacionais que examinam problemas que transcendem a soberania dos Estados-nação, mas testemunhada pela própria formação da União Européia, um alargamento da escala geográfica de todos os tipos de relação entre povos diferentes culturalmente falando, de passado terrível e de situações econômicas muito diferentes. As sociedade nacionais estariam se dissolvendo numa sociedade mais ampla a européia.
Outras iniciativas do gênero estariam se desenhando no futuro. Mas somente no quadro da reorganização política e territorial dos Estados-nação em direção a instituições mais amplas e generosas poderíamos ver indícios de uma futura sociedade mundial, ou algo parecido? Como desdobramento da segunda mundial não vimos surgir um entrelaçamento maior entre os povos? Movimentos pacifistas (em razão das guerras como as do Vietnã, por exemplo) não ganharam expressão mundial e ganharam o mundo sem expressar nenhuma nacionalidade específica? Não se multiplicaram e se diversificaram em torno de causas nobres e de expressão mundial (ambientalismo, contra a violação dos direitos humanos, etc.)?
Isso não está organizado em entidades não-governamentais, em fóruns, que se intercomunicam intensamente, o que a nova organização geográfica “mundial” possibilita com os desbloqueio da circulação (produto dos avanços tecnológicos, da diminuição do peso das fronteiras políticas etc)? Eis um tema fundamental para se discutir: estaria havendo realmente um avanço na direção da constituição de uma sociedade mundial? Quais as manifestações que podem ser vinculadas a essa construção?
O que será um mundo de verdade, que atenuaria a dimensão nacional, claro que sem desrespeitar as realidades locais e regionais que não desapareceriam, mas se beneficiariam em pertencer a quadros relacionais geográficos mais amplos? Se o final da segunda-guerra, de fato, criou algumas condições que indicam alguma construção nessa direção, aí realmente poderemos dizer que o mundo (a humanidade) mudou, ou está mudando na sua essência.



[1] Cf. Mark MAZOWER. Continente sombrio; a Europa no século XX. São Paulo, Cia das Letras, 2001.

Um comentário:

GIOVANNA disse...

VOCE PODIA TER FALADO SÓ COMO FICOU A NOVA ORDEM. MENOS CAPITALISMO, MAIS CAPITALISMO, EUA GANHOU MAIS TERRITORIOS E QUAIS.. EUA PERDEU E QUAIS. AFE