terça-feira, 15 de setembro de 2009

A globalização das epidemias

Jaime Oliva

A Sars, popularmente denominada “pneumonia asiática”, é uma doença infecciosa que já adquiriu status de epidemia. O perturbador é que existe o risco de ela tornar-se uma pandemia. Esses termos (epidemia, pandemia) reunidos a um outro, endemia, formam uma trilogia de expressões médicas muito empregadas na disciplina de epidemiologia, que entre outras atribuições estuda a influência de diversos fatores do ambiente físico e do ambiente social (incluindo modos de vida coletivos, comportamentos individuais etc.) para compreender a frequência das doenças infecciosas, seu modo de propagação, sua distribuição geográfica etc.
O risco da pandemia da Sars (uma epidemia globalizada) possui uma explicação que vai além dos componentes biológicos da doença em si. Exige que seja introduzido um outro elemento explicativo que encontra-se na dimensão geográfica do fenômeno. Partindo do entendimento da dimensão geográfica das expressões básicas (endemia, epidemia e pandemia) que buscam apreender o processo de contágio das doenças infecciosas serão propostas algumas discussões visando aproximar-se mais do entendimento da mecânica da Sars e os riscos de contágio generalizado que ela traz.

A dimensão geográfica da endemia e da epidemia: os termos epidemia e endemia são dos mais antigos em medicina. E qual a diferença entre eles? A idéia de epidemia tem antes de tudo um componente temporal e outro quantitativo: se caracteriza pela incidência, em curto período de tempo, de grande número de casos de uma doença. Por sua vez, a endemia é o contrário: um menor número de casos ao longo do tempo. Onde, então, encontra-se a dimensão geográfica dos termos endemia e epidemia?
Será que uma rápida expansão quantitativa de uma doença infecciosa fica restritiva a áreas restritas do espaço, onde antes essa doença era endêmica? Não é óbvio que a epidemia acaba por corresponder numa expansão geográfica da área de incidência da doença? Será que a própria origem da palavra endemia não nos dá uma pista da circunscrição espacial dos dois termos? Afinal endemos, em grego, significa "originário de um país, de uma região, de dentro”.
Logo, outro fator que define o caráter endêmico de uma doença é o fato de ser a mesma peculiar a um povo, país ou região. Assim, logicamente, pode-se concluir que uma epidemia transcende a origem geográfica da doença, rompe fronteiras, ameaça outras áreas. O conceito moderno de pandemia refere-se à consolidação em grandes proporções de uma epidemia que se espalha a vários países e a mais de um continente. Exemplo tantas vezes citado é o da chamada "gripe espanhola", que se seguiu à la. Guerra Mundial, nos anos de 1918-1919, e que causou a morte de cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo.
Por que ocorre uma epidemia? Uma doença infecciosa é endêmica enquanto sua mecânica de contágio permanece confinada em termos geográficos. Ou porque o vírus infeccioso e seus agentes (veículos) não sobrevivem em outros ambientes (por conta das condições do ambiente) ou porque ainda não surgiu uma oportunidade para o vírus multiplicar-se expandir e romper seu confinamento.
Quando não houver mais empecilhos as condições para uma epidemia estão dadas. O vírus do Ebola estava confinado em termos geográficos, mas seu habitat endêmico foi violado por pessoas que se contaminaram e serviram de veículo para sua libertação. Essa também é a hipótese para o vírus da Aids. Além da natureza que tem seus próprios veículos de difusão de seres microscópicos (que não possuem mobilidade própria em grandes distâncias), o ser humano, ser de grande mobilidade e que atualmente possui uma mobilidade de escala planetária, é sem dúvida o maior propagador de doenças infecciosas. Digamos, a mobilidade humana, é um poderoso agente epidêmico. Mas será que só agora com essa epidemia que vem da Ásia isso vem se tornando evidente?
A história da descoberta da América e da Austrália que pode ser entendida como o complemento da construção de uma rede relacional continental não testemunha uma série de processos de difusão biológica de seres microscópicos? Quantos vírus e sementes os europeus trouxeram involuntariamente em seus corpos e pertences que acabaram por infestar o Novo Mundo? Quantos casos de agrupamentos indígenas dizimados por “gripes européias” não foram relatados? De certa maneira, pode-se afirmar que a liberação da mobilidade humana significou também uma ampliação da escala de difusão dos contágios por vírus.
As modalidades de contato humano e contágio por doenças infecciosas: a escala de mobilidade de um vírus é ínfima, se o contágio dependesse disso, todas as doenças infecciosas seriam endêmicas. No entanto, é preciso verificar a escala de mobilidade dos agentes, dos veículos e se incluirmos aí o ser humano, potencialmente, no momento que vivemos, a escala de contágio de qualquer doença infecciosa é planetária. Que não quer dizer que é total. Isso porque a expansão embora possua potencial planetário se dá de modo desigual. Em termos internacionais atinge, num primeiro momento, aqueles povos que possuem maior mobilidade, que promovem uma massa de contatos em escala internacional mais elevada. E os motivos para isso são diversos.
Por que será, por exemplo, que a cidade de Toronto no Canadá conheceu uma incidência preocupante de casos? Um exame do perfil desse país e dessa cidade pode rapidamente explicar as causas disso? Isso apesar de ser um país que possui um sistema de saúde invejável. Do mesmo modo os EUA que sempre sofre muito com a expansão de doenças viróticas. Não foi assim no caso da Aids? Não houve um momento em que os EUA ostentavam um dos números mais elevados de doentes dessa síndrome transmitida por vírus? Na América do Sul só o Brasil tem casos suspeitos, mesmo assim muito poucos? Por quê? No que é distinta a nossa mobilidade em relação a dos americanos, canadenses e europeus?
Logo, para combater uma doença como a Sars é necessário como passo fundamental conhecer as modalidades de contato humano, seu alcance, a mobilidade, os meios de mobilidade etc. Saber atuar nas fronteiras e limiares desses caminhos e entroncamentos de transportes etc. Isso já não é feito cotidianamente nas viagens de escala internacional (principalmente)? Nós como brasileiros (habitantes de um país tropical, logo potenciais portadores de “micróbios terríveis”, segundo uma visão por vezes exageradas das autoridades dos países ricos) não temos que tomar vacinas para irmos a certos lugares? Quantas barreiras sanitárias são feitas em estradas para confiscar de passageiros pertences (principalmente frutas e animais) que podem ser agentes transmissores de micróbios de uma região para outra? Notem que o governo chinês está atuando sobre as formas de contato da população tentando na medida do possível promover o contato a distância nesse momento da epidemia.

Um comentário a mais: O medo do contato com o estranho tratado à exaustão na literatura e no cinema de ficção científica se justifica, pois não possui nada de apenas virtual. A história humana é povoada de grandes contágios que estranhos trouxeram ou que visitas a terras estranhas possibilitaram. Isso costuma ser tratado como uma punição a ousadia humana, a ambição humana etc. São vários filmes de ameaça à vida na Terra por conta do contágio promovido pela irresponsabilidade humana: a série que se inicia no filme de Riddley Scott, Alien – o oitavo passageiro, tem esse espírito é uma das mais conhecidas das gerações atuais. Mas de há muito, o cinema americano, por exemplo, faz do contágio provocado pela “loucura humana” uma atração inesgotável.

Um comentário:

Anônimo disse...

De fato... Porque não remetermos a questão da pandemia na época da colonização das américa? A mobilidade daquela época não é discutível?