terça-feira, 15 de setembro de 2009

Uma escolha terrível

Jaime Oliva


Os avanços científicos da medicina têm como efeito direto um aumento da expectativa média de vida dos seres humanos. Isso é obtido com a eliminação e o controle de doenças que poderiam significar a morte das pessoas na infância (principalmente) e mesmo noutras faixas etárias. Assim, combinado a ações de prevenção de doenças, consegue-se um índice mais alargado de pessoas que vão apenas morrer quando idosas. Um outro plano dos efeitos dos progressos na medicina refere-se à condição de vida das pessoas acometidas por doenças que não são ainda curáveis, porém controláveis. A manutenção da vida com qualidade aceitável de um doente de vida não é, obviamente, algo generalizado para todas as doenças.
Em muitos casos as pessoas podem ser mantidas vivas durante largos períodos, porém a custa de muito sofrimento. A despeito do grande sofrimento individual (e das famílias e outros envolvidos), o investimento na manutenção da vida é essencial para o futuro da medicina e da saúde humana. Mas aqui nesse ponto se encontra o núcleo do tema que será alvo das sugestões nessa atividade: a eutanásia. A saber: o direito do doente desistir da vida, depois de informado pela medicina, sobre o que será seu futuro.

O tema da eutanásia é complexo, mas não é um caso isolado. Ele pertence ao mesmo contexto social que torna candentes questões como as do aborto, do casamento dos homossexuais etc. Trata-se de um contexto social que registra a tensão entre fronteiras éticas estabelecidas historicamente (com variedade cultural se tivermos em mente, por exemplo, a formação judaico-cristã do mundo ocidental e as constelações culturais do oriente) e as novas demandas sociais que não se acomodam facilmente no quadro ético estabelecido. Fiquemos nos casos de vida e morte, que envolvem a medicina.
O paradoxo do avanço da medicina: A atualidade da discussão da eutanásia (do direito de decidir sobre a morte) não seria, paradoxalmente, resultado do avanço da medicina, portanto de uma conquista da vida? Quantos males, quantas doenças, quantos ferimentos, quanta sequelas que (não precisamos ir muito para trás) nos anos 1950 significavam morte certa e rápida e atualmente conseguem ser controladas e administradas, mesmo que isso signifique sofrimento cotidiano ao doente e por vezes um sofrimento que não permite que o doente compense isso com algum prazer da vida.
Não foi apenas num quadro assim que o doente e seus entes próximos se viram diante de uma questão que se impõe? Valerá à pena? A capacidade de a medicina prever, antecipar, enxergar o que não era anteriormente visível, e de comunicar aos interessados fatos, que mesmo ainda não ocorridos já começam a fazer parte da vida dos indivíduos, é uma outra fonte que expõe as pessoas as questões que elas não se colocariam normalmente. Não será esse o caso dos exames pré-natais que com grande precisão detectam males genéticos incontornáveis, doenças incuráveis que vão gerar grande sofrimento aos bebês enquanto eles sobreviverem?
As mães e pais que forem colocados diante de realidades desse gênero, diferentemente de nossos parentes mais velhos, estarão diante de um fato, que seja qual for os valores que as pessoas adotam, inclusive os religiosos, vai lhes fustigar sobre que atitude tomar? E anteriormente havia atitude alguma a se providenciar? Uma boa questão para discussão que se extrai dessa realidade é a seguinte: o avanço da medicina que nos deu mais saúde e maior consciência sobre o nosso futuro, inclusive como conseguiremos viver se estivermos doentes, por si só não constitui um quadro em que se exige algumas modificações nas premissas éticas tradicionais e também nos desdobramentos jurídicos? Afinal uma consciência maior sobre a vida implica em condições diferentes para tomar atitudes?
A ascensão do indíviduo: paralelo ao avanço da medicina há outras modificações no quadro sócio-cultural que pressionam os limites do padrão ético vigente em vários aspectos da vida, inclusive nas regras que regulam questões de vida e morte. A sociedade moderna conhece a construção da figura do individuo, dos direitos individuais, que contêm, por exemplo, o direito à livre expressão e opinião, o que significa, ao menos em tese, um controle mais importante de nosso próprio destino, a despeito das divergências que poderemos enfrentar.
Muitos pensadores assinalam esse fato como o mais importante e fundante da modernidade, pois diferentemente de sociedades tradicionais os interesses dos indivíduos têm o mesmo status que a os interesses das coletividades. Quais conclusões podemos tirar disso? Isso não significaria que visões dominantes coletivas, tais como as de origem religiosa que estão incorporadas nas relações sociais, não podem ser executadas contra a vontade dos indivíduos? Manter os interesses individuais significaria, nesse caso, deixar de ser religioso? As pessoas não se mantêm religiosas, porém escolhendo nos princípios religiosos aqueles que querem praticar?
Para atestar esse fato, vale até listar quais são os princípios religiosos que os católicos, os diversos evangélicos, os islâmicos, por exemplo, praticam e os que são impraticáveis numa sociedade moderna. A grande questão que propomos para se discutir no caso da reportagem é a seguinte: 1. a extensão da vida de doentes em razão do avanço da medicina, impossíveis até recentemente e a maior consciência do destino dos nossos corpos combinadas a ascensão dos direitos dos indivíduos não terminam por compor um quadro de pressão sobre os padrões éticos, construídos em épocas de condições distintas? Complementando essa questão: essas mudanças éticas, que parecem inevitáveis, chegarão até onde? Chegaremos até o direito ao suicídio, mesmo que não haja razões médicas como a eutanásia? Os indivíduos vão poder dispor de suas vidas como um direito individual?
Os limites dos direitos do indivíduo: um caso reportado recentemente nos informa que bebês gravemente doentes, sem perspectiva, estão tendo uma morte induzida, logo eles não são sujeitos de sua morte, como um doente adulto que decide morrer (casos dos personagens de dois filmes que ganharam Oscar no ano 2004 – Mar Adentro e Menina de Ouro). Isso, mesmo um quadro ético renovado suportaria? É bom lembrar que a mesma questão se coloca para doentes adultos que perdem a consciência e ficam vivos em coma, por exemplo. Obviamente é uma questão complexa. Mas não haveria uma diferença?
As crianças, em especial as recém-nascidas, possuem uma dependência vital dos pais. Eles já dispõem sobre tudo de suas vidas, pelo menos até uma certa idade. Daí o conceito de responsabilidade dos pais em relação às crianças. Essa constatação não seria suficiente para dar direito aos pais de decidir sobre a eutanásia de crianças em certas condições? Mas sem dúvida há um imenso perigo em transformar em direito individual algo que diz respeito ao outro. As brechas para que se façam valer interesses e valores que não dizem respeito ao outro podem deslizar para ações que uma ética moderna e renovada não suportaria. Sem rigor nesse campo não estariam em risco as vidas das pessoas deficientes (mas que podem viver apesar das limitações, desfrutando da vida com intensidade, desde que a sociedade se organize para isso)? Até mesmo casos mais escandalosos, como a “eliminação” de bêbes-meninas, não acabariam se encaixando nesse caso de um indivíduo dispor sobre a vida de outro?

Um comentário:

Hermerson Alvarenga disse...

Texto Maravilhoso. De fato é "Uma escolha terrível"