segunda-feira, 13 de abril de 2009

O que é ser um país do primeiro mundo


Jaime Oliva

Em maio de 2002 uma importante revista brasileira decretou que o Brasil já seria um país do primeiro mundo (http://veja.abril.com.br/especiais/brasil/index.htm). Para sustentar essa condição a revista traz um conjunto organizado e analisado de informações socioeconômicas que cobrem vários, mas vários temas, mesmo. Haveria em nosso país uma série de dimensões às quais já se pode atribuir a condição de “primeiro mundo”, visto que são dimensões que vêm vivendo situações de desenvolvimento. Em vista da complexidade de questões relacionadas ao desenvolvimento do Brasil, a notória carga polêmica e controversa que essa conclusão naturalmente traz, ela se apresenta como um material bastante interessante para trabalhar-se em ambiente escolar.
O volume de informações selecionadas é muito grande, aliás, como é comum acontecer com grandes reportagens dos órgãos de imprensa. Como diante de tantos dados e informações é possível realizar análises e interpretações que permitam construirmos nossas opiniões de modo relativamente seguro? Antes de tudo: é preciso saber organizar uma interpretação sistemática, que identifique os aspectos estruturais dos dados e da análise, os aspectos conjunturais, o que é mais relevante e o que é secundário etc. Esse é o desafio. Mesmo porque vivemos numa sociedade que nos abastece constantemente com volumes enormes de dados e informações e se não formos capazes de dominarmos metodologias de análise seremos sufocados pelas informações e elas de nada adiantarão, ou então nos imprimirão leituras do mundo impressionistas, na verdade uma espécie de “impressionismo terceirizado”.
Sempre que se vai partir para a análise e debate de materiais que mobilizam tantos temas, é normal que eles provoquem discussões e divergências com algumas partes, concordância com outras etc. Por isso, é preciso critérios para julgar o material no seu conjunto e ter claro o que se está fazendo. A análise do material pode ser apenas interna. Isso quer dizer que ele será analisado em si, sem comparações com outros dados e outras publicações e fontes. A análise pode ser comparativa. Por exemplo: numa passagem da edição especial há referências positivas aos avanços em infra-estrutura energética e às privatizações no setor (e em outros setores). Essas referências positivas estão calcadas em dados e informações. Mas, sabemos que há críticos severos da privatização no setor elétrico e que a considera responsável por um colapso que o setor energético viveria. Para defender essas posições já se publicou um conjunto de informações que procuram sustentá-las. Quem tem razão?
Confrontar dados de posições divergentes é um outro nível de análise. É uma análise comparativa. Ambas são fundamentais para a seriedade da empreitada. No caso, aqui, nossa proposição vai privilegiar a análise interna, em função do limite de espaço. A análise comparativa fica como sugestão de trabalho. E ela é indispensável.
Sugestão de metodologia de análise: a aula proposta procurará servir como uma sugestão de roteiro metodológico de análise do material da edição especial. Esse roteiro se divide em dois conjuntos: 1. Os tópicos “O contexto da expressão ‘primeiro mundo’”, “Escala de tempo e modernização” e “Relação entre consumo, qualidade de vida, modernização e desenvolvimento”, formam o conjunto de itens relacionados aos aspectos gerais do material da revista; e 2. “Infra-estruturas territoriais”, “Educação e trabalho” e “Modernização das Relações de Trabalho”, “Cidades médias e cidades grandes”, “Indivíduo e religiosidade” e “Ecologia” compõem o conjunto de tópicos relacionados a temas pontuais.
O contexto da expressão “Primeiro Mundo”: Qual o uso que está sendo dado para a expressão “Primeiro Mundo” na matéria? Parece que esse uso refere-se a uma escala de desenvolvimento e chegar ao primeiro mundo é chegar ao máximo de desenvolvimento. Desde que existe essa terminologia o Brasil é designado como sendo de terceiro mundo. Se a essa expressão for dada a conotação de escala de desenvolvimento estaremos chegando ao primeiro mundo sem passarmos pelo segundo mundo. Afinal que expressões são essas? O que significa historicamente primeiro mundo? O que está identificado a eles? Vocês conhecem a expressão “isso parece coisa de primeiro mundo”? O que no Brasil é identificado popularmente como coisa de primeiro mundo? Vocês acham que o uso que a edição especial está fazendo dessa expressão se justifica? É um uso correto?
Escala de tempo e modernização: o texto de apresentação da matéria diz que o verificado processo de “desenvolvimento” brasileiro não pode ser atribuído a um único governo. Para demonstrar a afirmação, traça uma “linha do tempo” que se inicia nos anos 1950, quando vieram as primeiras indústrias, passa pelas indústrias de base, instaladas nos anos 1960, a abertura e pavimentação de estradas dos anos 1970, a intensificação das campanhas de vacinação nos 1980 e termina com a estabilidade política e econômica alcançada nos anos 1990. Identifica esses pontos mencionados a verdadeiros marcos do desenvolvimento. Na verdade a análise abrange uma escala de tempo de meio século. Nesse período não há quem discorde que o Brasil sofreu enormes e profundas transformações. Nesse sentido, nessa escala de tempo, não há polêmica alguma.
Surge a discussão na maneira de se valorizar o que aconteceu nesse período. Algo que deixa de ser mencionado, mas que todos apontam com uma enorme mudança estrutural é a urbanização. O país era rural, o que não quer dizer necessariamente ruim, mas sim rural. Deixar de ser rural e passar a ser majoritariamente urbano é um dado de modernização que se opõe a um tipo de sociedade anterior que era de estilo tradicional. Comparar o Brasil atual com o Brasil do começo do século é quase o mesmo que comparar o Brasil com a África, porque nesse continente a maioria dos países não tem um estilo de vida moderno. Acontece que a modernização pode ser modernização mal sucedida sem deixar de ser modernização. Afinal não é assim que são julgadas as nossas grandes cidades? Quer dizer: uma coisa é modernização, como transformações estruturais em relação ao mundo rural (sua estrutura social, seu tipo de economia, etc.); outra coisa é a qualidade da modernização. Se não diferenciarmos isso vamos fazer coincidir modernização com desenvolvimento de modo muito automático e a discussão se empobrecerá. De fato os países do primeiro mundo são modernos, mas o Brasil também é e nem por isso pode ser equiparado em termos de desenvolvimento. Indústria, vacinação em massa, democracia política (e não estabilidade), generalização (e não concentração) do consumo são modernizações. Mas elas precisam ser avaliadas para julgar suas repercussões enquanto desenvolvimento efetivo. Ter em mente a idéia de modernização como algo que não é exatamente desenvolvimento é um bom elemento para avaliar o material da edição especial.
Relação entre consumo, qualidade de vida, modernização e desenvolvimento: a edição especial nos dá dados de crescimento de acesso ao consumo. E associa esse fenômeno à melhoria da qualidade de vida e ao desenvolvimento. Isso porque no chamado primeiro mundo o acesso a bens de consumo são elevados. Isso fica claro com os seguintes dados: 87% das residências brasileiras têm televisão; 70% têm geladeira. Em contrapartida, 20% das residências não têm água tratada e 40% não têm serviço de esgoto. Dá destaque para o crescimento da oferta de produtos em prateleiras de supermercados. Na área da telefonia, 21 milhões de celulares e 26 milhões de telefones fixos foram entregues em quatro anos (após a privatização). Podemos acrescentar um dado que não aparece na matéria IBGE: 10,6% dos domicílios brasileiros contam com computadores. Não seria preciso caracterizar os consumos, discutindo em alguma medida prioridades. O acesso a geladeiras, telefones, serviços de saneamento, eletricidade, saúde e educação é diferente de outros consumos também mencionados na matéria. A matéria destaca a presença de grifes européias e norte-americanas nas grandes cidades brasileiras, além da simultaneidade de exibição de filmes norte-americanos lá e aqui, como sinal de desenvolvimento. A partir disso, podemos discutir: a presença de grifes estrangeiras evidencia a presença elevada de renda nas mãos de indivíduos. Associada ao cinema norte-americano, evidencia o índice de conexão das cidades brasileiras ao “mundo desenvolvido”. Pode-se discutir se essa conexão é sinal/sinônimo de desenvolvimento ou não.

Infra-estruturas territoriais: A matéria destaca como positivas as ações na área de infra-estrutura de transportes “O país ganhou hidrovias, as ferrovias foram ressuscitadas e os aeroportos, ampliados” (aqui, a contradição: apesar de admitir que a situação da maioria das estradas é caótica – em poucas linhas, é claro – o destaque da matéria é para quatro grandes empreendimentos: uma rota para o Pacífico que atravessa o Peru, uma ferrovia que liga Mato Grosso ao Porto de Santos e duas hidrovias, que ligam Mato Grosso ao Sul e ao Norte). A questão da telefonia é largamente explorada, com dados que mostram o antes e o depois das privatizações. O turismo interno aparece como o substituto de Miami na preferência da classe média brasileira. A grande quantidade de televisores nas casas também é apontada como um fator positivo. Vale questionar: telefonia, turismo, transportes, televisão são todos elementos que ajudam a integração do território. De fato essa integração aconteceu? Esses elementos atuaram no sentido de minimizar as desigualdades regionais? (DADO DO IBGE, não aparece na matéria: os melhores indicadores sociais são registrados na região Sudeste, especialmente a escolaridade)
Educação e trabalho e Modernização das relações de trabalho: A matéria apresenta índices positivos de escolarização dos trabalhadores. Aponta que 10% dos operários das montadoras de veículos do país cursam universidades. Entre balconistas de shoppings esse índice alcança 25%. Existem 100.000 estudantes fazendo mestrado ou doutorado; 250.000 fazendo MBA e especialização. Aponta que nos anos 1080 a mão-de-obra tinha em média três anos de estudo e hoje, são cinco anos. Um pouco depois de fazer esse apontamento, para “provar” que a contrapartida financeira à maior escolaridade é verdadeira, cita os salários dos executivos que, segundo o texto, triplicou em uma década. É possível associar a isso um outro momento da reportagem, que trata da mobilidade social. Segundo dados apresentados, quase metade das pessoas vive melhor que os pais. A taxa de mobilidade social positiva brasileira estaria entre as maiores do mundo. Uma das causas apontadas para isso é o número de matrículas no ensino superior, que triplicou na última década. Mas, ao mesmo tempo, em outro momento, a reportagem afirma que nunca a escolaridade pressionou o mercado de trabalho da forma como faz hoje. Aproximadamente dois milhões de postos de trabalho foram fechados na última década. A concorrência por um lugar como estagiário mobiliza até 1000 candidatos. Uma realidade apontada pelo IBGE dá conta de uma população urbana que trabalha por conta própria, cuja renda já é maior do que a dos que trabalham formalmente. Ao mesmo tempo, o envelhecimento da população está provocando problemas na previdência. Se em 1980 a relação trabalhador/aposentado era de 1 pra 8, em 1990 era de 2 pra 1.
Cidades médias e grandes: A matéria dá conta da ocupação, que considera definitiva, e do conseqüente crescimento do interior do país. Quadro aponta que, no ano 2000, 60% da população estão concentrados na faixa litorânea e 40% da população estão no interior do Brasil. Já existem mais estudantes matriculados em universidades no interior do que nas capitais; a renda de quem mora no interior sobe mais rápido que a dos habitantes das capitais. O interior abriga ainda 40% das 500 maiores empresas do país e tem sua população aumentando, enquanto nas capitais o crescimento demográfico estabilizou-se. A reportagem afirma ainda que as megalópoles, atualmente, são fenômenos do terceiro mundo. Das dez maiores do mundo, sete estão em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. O tamanho das cidades, como faz a reportagem, pode ser usado como um índice de desenvolvimento?
Mobilizar tantos dados e temas tão diversos e daí extrair conclusões taxativas é uma ingenuidade. Metodologicamente a variedade de conexões revela a complexidade da realidade e da empreitada. Isso sem discutir o quanto há de ideológico nos temas valorizados. É bom sempre lembrar: não somente as esquerdas ideologizam questões complexas, tornando-as simplórias com sua abordagem maniqueísta. Há ideólogos de outra cepa que igualmente transformam em índice de desenvolvimento aquilo que consideram desenvolvimento, gerando uma tautologia que não respeita a falta de consenso nesse campo.

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