quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

ENSINO SUPERIOR PRIVADO: UMA SOBRA SOCIAL?

Jaime Oliva

Em torno de 70% dos estudantes brasileiros no nível superior estudam em escolas privadas, e de forma dominante esse público cumpriu sua educação no sistema público do ensino fundamental e médio. Sistema esse, que sabemos, apresenta graves problemas, como as avaliações oficiais têm demonstrado (aliás, nem seria preciso avaliações diante da evidência do que ocorre).

Tal gravidade não significa mobilização social para revertê-la; a indiferença social (levemente quebrada recentemente com a polêmica da anulação de uma prova de seleção feita no sistema do Estado de São Paulo) é o que domina por um lado, a paralisia por outro.

De fato criou-se uma divisão no mundo da educação (somos um país que parece entender que construir uma sociedade é militar por dividir, separar, afastar, segregar), entre o sistema privado e público, que termina sofrendo uma inversão no ensino superior. Quem é egresso do sistema público na educação básica vai para o ensino superior privado e vice-versa.

A questão, sem exagerar muito, é que a maioria dos estudantes que chega ao sistema particular ou semi-público (Fundações, por exemplo) de ensino superior, vem sobrecarregada de imensas dificuldades, e tudo até aqui é muito óbvio, não surpreende ninguém. Não há novidade. São velhas constatações chocantes que não chocam.

Mas, é aí que a surpresa vai se instalar: o sistema de ensino superior (público e privado) dominantemente, se curva a essa realidade (ou pior se adapta) e está mais ou menos definido que esse quadro não deveria existir, e JÁ QUE EXISTE NADA PODE SER FEITO PORQUE SE TRATA DE UM QUADRO QUE FUGIU DO NORMAL. Afinal, não pode ser normal um sistema que forma pessoas com problemas estruturais de leitura, de raciocínio matemático etc. Que mata a curiosidade das crianças e dos jovens, que os torna hostis ao conhecimento.

Se a realidade terminou sendo assim, temos que negá-la, expeli-la. Enfrentar não é possível. E aí um preconceito forte que se instala contra o sistema privado de ensino superior: o sistema público não vai absorver esse tipo de estudante; por meio dos seus filtros vai, na verdade, expeli-los: ISSO SERÁ SINTOMA DE SERIEDADE.

Por outro lado e ao contrário, o sistema privado vai promover uma disputa selvagem por esse aluno: ISSO É SINTOMA DE IRRESPONSABILIDADE, pois com esse aluno nada pode ser feito, a não ser extorquir seus parcos recursos econômicos. Ninguém é ingênuo, de fato algo ocorre nessa direção. Mas, não dá para encerrar a discussão nesse ponto.
Se assim for ficaremos na expectativa que o sistema público de ensino fundamental e médio melhore, que o sistema de ensino superior se expanda e... sabemos, isso não vai acontecer nem no médio prazo e quem sabe em prazo algum... enquanto isso gerações, VERDADEIRAS SOBRAS SOCIAIS, de jovens que procuram o sistema de ensino superior privado e ingressam nos cursos que lhes aceitam estão condenados ao quê? Ao nada, pois nada pode ser feito por quem já nasceu e entrou errado, numa “fábrica de diploma”, que se fosse séria não deveria ter deixado entrar essa criatura. E nesse círculo vicioso gerações vão se perdendo...

Um bom choque de realidade não custa nada: esse volume imenso de jovens e adultos que ingressa nesse sistema, precisa ser envolvido em atividades produtivas, precisa se formar, precisa obter ganho cultural, não pode permanecer na mesma... OU NÃO SÃO DIGNOS DE APOIO DE TIPO ALGUM, SE PAGAM DUPLAMENTE POR FORMAÇÃO? Isso não é eticamente aceitável, mas há também o argumento intelectual: O que em sã consciência pode ser obstáculo intransponível que impeça a melhoria da formação desses alunos?
Existem dois obstáculos que normalmente se coloca: 1. Temos um modelo ideal do que deveria ser um profissional numa dada área; exasperados com as dificuldades do presente damos de barato que o aluno não chegará perto desse modelo. A isso eu chamaria de uma SUBESTIMAÇÃO REALISTA. É possível mesmo... E aí? Ficamos paralisados? Mudemos de modelo, que o objetivo seja que esse aluno melhore, vamos investir em sua autonomia, nos seus ganhos culturais... Ele não pode ficar igual ao que entrou, aí ele terá chances... e a educação contará na construção social que pode surpreender atingindo de forma não linear o modelo de profissional ideal; 2. Diante das carências desse aluno ele precisa de mais condições ainda do que o aluno que está estudando em condições ideais. Justo ele que tem somado à sua vida outras dificuldades (de tempo, de recursos etc.) e aí o quadro se torna mais insuportável. Esse é o PESSIMISMO REALISTA. Como compensar o que ele não tem e já devia ter, como acelerar sua formação em condições tão inadequadas. Nesse caso, como no outro a paralisia agrava a questão e nos coloca na situação de médicos que diriam não poder cuidar de pessoas que estão muito doentes (perdoem se a metáfora pode parecer ofensiva aos alunos). Mas, antes de tudo, nessa situação é que os professores e professoras têm muito mais o que fazer, do que se estivéssemos diante de um quadro ideal, do aluno bem formado, dos recursos adequados...

Essa FATALIDADE REALISTA pode ser bem substituída por pontes que vão ajudar a transpor esse abismo que separa os objetivos gerais dos cursos e as condições em que os alunos chegam para freqüentá-los.

Como ganhar tempo? A aula, os procedimentos, todas as nossas práticas devem ter em mira o resgate e a construção do que já deveria existir, caso contrário a relação pedagógica não se estabelece de forma produtiva, pois será sabotada por mil e uns mecanismos espertos de sobrevivência do estudante e do professor, nesse cenário mais ou menos absurdo.

Dois comentários sobre o que fazer: 1. antes dizendo, que há muito o que fazer, e muita coisa é simples. Insisto na metáfora médica: hábitos de higiene resolvem uma boa parte dos problemas de saúde. Será que no mundo da educação isso não encontra alguma semelhança? 2. Nossos alunos não têm o mesmo tempo do aluno ideal, nós temos que fazê-los se apressar, nós temos que ter pressa e aí a aula conta muito, com os recursos que podem ser construídos: devemos nos auto-avaliar e procurar identificar quais são as elaborações, os entendimentos de nossas especialidades que levamos anos para absorver e construir? Pois vamos dar tudo de “mão-beijada” aos estudantes já. Em especial, temos que tornar nítidas para nós as estruturas de pensamento que nos orientam, e expô-las aos estudantes. Expor os bastidores do conhecimento. A ordem é economizar no processo de construção, que pode se acelerar. (continua)

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