quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Uma mutilação do tempo: as crianças sem futuro


Jaime Oliva

Já há algum tempo o público brasileiro foi exposto em rede nacional a uma das faces mais cruéis do país. O documentário Falcão de MV Bill e Celso Athayde traz o testemunho direto de crianças envolvidas no tráfico de drogas. O retrato é chocante e a reação imediata de qualquer um que assistiu o documentário, talvez devesse ser o de perplexidade: como se permitiu que a situação chegasse a esse ponto no Brasil? Um dado interessante do documentário é que as crianças retratadas (a maioria já está morta) não são apenas das favelas e dos morros do Rio de Janeiro, com um senso comum mais imediato poderia afirmar. Os documentaristas vão a lugares que poucos foram: Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre e em todas essas cidades encontraram situações muito graves. Esse fato por si só mostra que essa questão tem abrangência nacional. Além disso, embora nem todas as crianças em áreas de domínio do tráfico se envolvam com ele, o número de envolvidos é bem grande. Será esse um fato anômalo da infância brasileira, ou é apenas o aspecto mais extremo de uma realidade de descuido generalizado com boa parte das crianças de nosso país?

Quando se fala da infância brasileira (até 14 anos) está se falando de uma parcela muito grande da população, algo em torno de 1/3 do total. Por mais que a taxa de fecundidade no Brasil venha caindo (essa taxa é a principal responsável pelo tamanho dessa faixa etária), o tamanho absoluto da população de crianças vai se manter durante mais uns 20 anos pelo menos. Discutir se esse contingente populacional está vivendo bem é algo de suma importância no presente, mas também diz respeito ao nosso futuro, como parece óbvio, o que não ajuda muito, pois as obviedades ainda são evitadas no Brasil. Será que é assim que nossa sociedade (e autoridades) está encarando esse problema, como uma obviedade que ameaça o futuro do país? Não temos muitas crianças pelas ruas sem ocupação, sem ir a escola, pedindo nos faróis, nas casas, guardando automóveis em estacionamento etc? Nota-se alguma forte preocupação da sociedade em geral em relação a essa situação? Ou há uma indiferença grande?

A realidade retratada pelo documentário já era fartamente conhecida a partir de pesquisas acadêmicas, feitas nas universidades. A repercussão dessas pesquisas chega timidamente na imprensa e praticamente não alcança rádios e a televisão. Foi esse o grande trunfo desse documentário. Visto em horário nobre ele revelou e gritou para uma população maior algo que a cegueira social no Brasil insiste em não ver. Que pelo menos para uma grande parte da infância brasileira o Brasil não é um país do futuro. Eles não terão futuro. O caso é extremo, envolve crianças numa atividade criminosa, de grande violência cujo horizonte é a morte certa. Mas, as crianças de 4, 5 anos nos faróis (semáforos, sinaleiros) das grandes cidades, pedindo até altas horas da noite não revelam também que a questão vai bem além desse foco extremo do crime e da violência? Talvez para essas crianças a situação não seja tão grave, talvez não morram tão inevitavelmente como as outras, mas qual será o futuro delas?Estudarão, estarão preparadas para ingressar numa vida profissional, terão estrutura emocional para compor famílias? Ou viverão um futuro de marginalizados, de excluídos dos benefícios e prazeres da sociedade moderna?

Um outro aspecto importante a ser discutido a partir da realidade mostrada no documentário é sobre o papel das autoridades governamentais. Evidentemente que ninguém pode acreditar que essas autoridades (municipais, estaduais e federais) desconhecessem essa realidade. Mas, com o impacto do documentário são obrigadas a se posicionar e a enfrentar a questão da ausência do Estado nas áreas de domínio do tráfico. Não há o que justifique essa ausência. O Estado não deveria existir justamente para resolver uma questão destas? Que dificuldade haveria? É evidente que agora a situação é difícil de resolver. Mas, não terá ficado assim em razão de uma omissão histórica do Estado nas áreas de pobreza? E não há dificuldade alguma que justifique nesse momento a ausência de uma ação mais eficaz do Estado, pois afinal grupos de voluntários das próprias comunidades (como o Afro Reggae – devem existir outras iniciativas) conseguem sucesso em evitar que uma boa parte das crianças tenha esse destino. E o fazem com boa vontade, com criatividade, com seriedade e com poucos recursos. Ora, se são bem sucedidos, por que o aparelho estatal com toda sua estrutura não consegue maior eficiência? Não há algo estranho, que não fecha nessa conta? Será que nossa sociedade (em especial aqueles segmentos que têm voz política, elites, classes médias etc) não está cobrando pouco do Estado nessa ação? Será que os segmentos mais bem posicionados não estão apenas reivindicando proteção da eventual violência que está sendo fecundada no mundo de boa parte da infância brasileira? Poderia, inclusive, entrar-se na questão dos que consomem as drogas e são por isso fomentadores do tráfico? Será possível permanecer nessa prática de consumo sem nenhum peso, sem nenhuma culpa, ao ver o destino de crianças associado ao tráfico?

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