Jaime Oliva
Os recentes conflitos armados que envolveram a Rússia e a Geórgia reavivaram as velhas análises do período que ficou marcado por um slogan: a Guerra Fria. Nesse período entendia-se que havia uma “ordem mundial” marcada por um equilíbrio de forças militares entre os EUA e a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), uma configuração (um país) que começa a se instituir após a Revolução Socialista em 1917 e que se dissolveu no final do século XX. Na verdade, interpretava-se o mundo no pós-segunda guerra mundial (pós-1945) como um quadro que se organizava e se movia conflituosamente a partir de uma disputa entre dois sistemas sócio-econômicos contraditórios: o capitalismo cuja abrangência e liderança tinha nos EUA sua principal força e o socialismo que estruturou no mundo a partir da URSS. As crises diplomáticas do período, os conflitos bélicos localizados teriam como pano de fundo essa disputa maior o que representava um risco potencial de guerra nuclear, visto os equipamentos bélicos das duas grandes potências militares.
Porém, esse cenário se desfez com a dissolução da URSS e com o desmanche do mundo socialista (na Europa do Leste, por exemplo) que se seguiu. O mundo atualmente encontra-se sob uma “nova ordem”. A diminuição dos conflitos armados entre países é evidente e já é possível notar até algumas situações de aliança militar e econômica entre os EUA e a Federação Russa maior país que resultou da dissolução da URSS. A questão que aqui se coloca diz respeito ao quanto desse período resta como herança. Teria se mantido uma rivalidade EUA e russos, mesmo que agora não se possa falar numa concorrência capitalismo e socialismo? Estaria a Federação Russa diante de uma ameaça tal de seus interesses atacados que estão por parte do mundo ocidental a ponto de se reavivar as interpretações, os medos e os riscos da Guerra Fria, afinal do ponto de vista bélico, EUA e Rússia são países que permanecem como potências nucleares? É justo interpretar o atual conflito bélico Rússia e Geórgia, que teve como pivô a Ossétia do Sul, com as mesmas referências do período da Guerra Fria, afinal para muitos na ousadia da Geórgia em desafiar o poder russo é possível encontrar-se um apoio, um estímulo dos EUA? Não estamos correndo o risco de deslocar historicamente as interpretações, praticando uma espécie de anacronismo inverso?
A geopolítica no centro das interpretações: sempre que se analisavam os conflitos bélicos e os interesses em disputa entre os países no período da Guerra Fria, a lógica de disputa entre o expansionismo capitalista e a resistência e construção de um mundo alternativo socialista era trazida à luz do dia. Isso não se pode fazer mais, afinal a Federação Russa se reestrutura dentro dos marcos de uma sociedade que se organiza como economia de mercado, como uma sociedade capitalista se quisermos usar esse tipo de referência. Seus interesses são os de ampliar suas relações comerciais e relações de todos os tipos com o mundo de uma maneira geral. Assim, sai de cena uma rivalidade colocada nesses termos, e surge outra marcada pela palavra geopolítica. Entre Rússia e EUA haveria uma forte rivalidade geopolítica, que senão é caracterizada pela disputa entre capitalismo e socialismo, é marcada por interesses, digamos, dentro do próprio cenário capitalista. Não é assim, que as autoridades da Rússia têm se manifestado ao dizer que o seu país é discriminado nas relações internacionais econômicas, sendo vítima de exigências não cabíveis para ter acesso à Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo? Os elementos desse quadro contemporâneo seriam os seguintes:
1. A Rússia tem grande potencial econômico, fartos recursos naturais energéticos e futuro promissor, no entanto, não é de fato ainda uma potência econômica e o poder de “imposição” de seus interesses econômicos no mercado mundial (no “mundo globalizado”) não é relevante, visto sua fragilidade no campo das tecnologias de ponta, por exemplo;
2. No entanto, a Rússia herda a força militar da URSS, que é descomunal, e herda também uma forte influência sobre as outras repúblicas que compunham a antiga União, uma influência que tem forte expressão social e econômica para a Rússia. Durante a fase na qual se tentava a consolidação da URSS houve ao longo dos territórios das repúblicas não-russas um processo de “russificação”, com fortes correntes migratórias de russos que ali se instalaram e que mesmo após a dissolução da URSS se mantém nesses países inseridos na vida econômica e com forte identidade nacional/russa (na Ucrânia, por exemplo, na Geórgia, na pequena Ossétia do Sul etc.);
3. Essas outras repúblicas (Geórgia, Bielo-Rússia, Ucrânia etc.) são, por outro lado, palco de fortes tensões internas cujo eixo é justamente a relação com a Rússia e há movimentos para modificações dessas relações (que mantém certos traços autoritários e desvantajosos da época socialista);
4. Essa certa instabilidade nas relações da chamada CEI (Comunidade dos Estados Independentes) parece excitar as forças ocidentais, em especial os EUA, no exercício de seus interesses na região. Assim, essas repúblicas estariam sendo assediadas para compor o bloco ocidental (simbolizado na OTAN, organismo militar) e abrir-se para relações econômicas mais intensas com a Europa e os EUA, o que feriria os interesses russos. Se esses não são fortes economicamente, são poderosos militarmente e têm uma tradição de domínio, por vezes brutal e impiedoso na região.
Quer dizer, não tem capitalismo rivalizando com socialismo, mas mantêm-se uma disputa geopolítica feroz. E o que é geopolítica?
Geopolítica: a reguladora das relações internacionais desiguais: geopolítica não é a junção inocente da palavra Geografia com a palavra Política e que daria o sentido de uma política na extensão geográfica do mundo, a política entre os países. Sequer pode ser considerada política propriamente porque no mundo não há instituições políticas nas quais se decide politicamente e com legitimidade os conflitos gerados nas relações entre os diferentes países. Na há instâncias em que se vote, se decida e todos os interesses cedam a essas decisões, como seria, por exemplo, no interior de um país. Os EUA perderam a votação no Conselho de Segurança da ONU sobre a pertinência de se invadir ou não o Iraque (que teria armas de destruição em massa e “acoitaria” grupos terroristas que atacaram os EUA e o mundo ocidental) e, após essa derrota, o país invadiu o Iraque e pronto. Não se entendeu naquele país que essa decisão representava uma força política legitima perante os seus interesses. O que se entendeu (e se entende) é que basta que o país defina quais são seus interesses e que lute por eles, negociando e se preciso guerreando, usando a violência em última instância. Isso seria um “direito reconhecido” de todos os países, isso é a geopolítica, que obviamente une mais força econômica e militar em sua alma, do que política. E nesse sentido, os EUA têm muita força geopolítica no mundo e a Federação Russa também, ao menos naquela região imediata do seu entorno (a Rússia atual não tem a força econômica para “avançar” sobre o mundo, mas tem a militar para assustar). Que a força geopolítica dos EUA (e de seus aliados europeus) se exerça na região da CEI é sem dúvida fonte de conflito, pois ali se encontram acantonados interesses de uma potência geopolítica, que quer se aliar ao mundo ocidental, mas com vantagens que sua história e seu poder militar lhe garantem e isso é a geopolítica. Atiçar a Geórgia, assediar a Ucrânia, é mexer, no contexto atual, com o “grande urso” russo, que quer se posicionar no mundo contemporâneo de acordo com suas forças, afinal ainda somos um mundo em que a força econômica, a força militar falam bem alto, por vezes, bem mais alto que outras possibilidades de relações entre os povos do mundo. Possibilidades que seriam marcadas pela verdadeira política, pela democracia e pela justiça.
Porém, esse cenário se desfez com a dissolução da URSS e com o desmanche do mundo socialista (na Europa do Leste, por exemplo) que se seguiu. O mundo atualmente encontra-se sob uma “nova ordem”. A diminuição dos conflitos armados entre países é evidente e já é possível notar até algumas situações de aliança militar e econômica entre os EUA e a Federação Russa maior país que resultou da dissolução da URSS. A questão que aqui se coloca diz respeito ao quanto desse período resta como herança. Teria se mantido uma rivalidade EUA e russos, mesmo que agora não se possa falar numa concorrência capitalismo e socialismo? Estaria a Federação Russa diante de uma ameaça tal de seus interesses atacados que estão por parte do mundo ocidental a ponto de se reavivar as interpretações, os medos e os riscos da Guerra Fria, afinal do ponto de vista bélico, EUA e Rússia são países que permanecem como potências nucleares? É justo interpretar o atual conflito bélico Rússia e Geórgia, que teve como pivô a Ossétia do Sul, com as mesmas referências do período da Guerra Fria, afinal para muitos na ousadia da Geórgia em desafiar o poder russo é possível encontrar-se um apoio, um estímulo dos EUA? Não estamos correndo o risco de deslocar historicamente as interpretações, praticando uma espécie de anacronismo inverso?
A geopolítica no centro das interpretações: sempre que se analisavam os conflitos bélicos e os interesses em disputa entre os países no período da Guerra Fria, a lógica de disputa entre o expansionismo capitalista e a resistência e construção de um mundo alternativo socialista era trazida à luz do dia. Isso não se pode fazer mais, afinal a Federação Russa se reestrutura dentro dos marcos de uma sociedade que se organiza como economia de mercado, como uma sociedade capitalista se quisermos usar esse tipo de referência. Seus interesses são os de ampliar suas relações comerciais e relações de todos os tipos com o mundo de uma maneira geral. Assim, sai de cena uma rivalidade colocada nesses termos, e surge outra marcada pela palavra geopolítica. Entre Rússia e EUA haveria uma forte rivalidade geopolítica, que senão é caracterizada pela disputa entre capitalismo e socialismo, é marcada por interesses, digamos, dentro do próprio cenário capitalista. Não é assim, que as autoridades da Rússia têm se manifestado ao dizer que o seu país é discriminado nas relações internacionais econômicas, sendo vítima de exigências não cabíveis para ter acesso à Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo? Os elementos desse quadro contemporâneo seriam os seguintes:
1. A Rússia tem grande potencial econômico, fartos recursos naturais energéticos e futuro promissor, no entanto, não é de fato ainda uma potência econômica e o poder de “imposição” de seus interesses econômicos no mercado mundial (no “mundo globalizado”) não é relevante, visto sua fragilidade no campo das tecnologias de ponta, por exemplo;
2. No entanto, a Rússia herda a força militar da URSS, que é descomunal, e herda também uma forte influência sobre as outras repúblicas que compunham a antiga União, uma influência que tem forte expressão social e econômica para a Rússia. Durante a fase na qual se tentava a consolidação da URSS houve ao longo dos territórios das repúblicas não-russas um processo de “russificação”, com fortes correntes migratórias de russos que ali se instalaram e que mesmo após a dissolução da URSS se mantém nesses países inseridos na vida econômica e com forte identidade nacional/russa (na Ucrânia, por exemplo, na Geórgia, na pequena Ossétia do Sul etc.);
3. Essas outras repúblicas (Geórgia, Bielo-Rússia, Ucrânia etc.) são, por outro lado, palco de fortes tensões internas cujo eixo é justamente a relação com a Rússia e há movimentos para modificações dessas relações (que mantém certos traços autoritários e desvantajosos da época socialista);
4. Essa certa instabilidade nas relações da chamada CEI (Comunidade dos Estados Independentes) parece excitar as forças ocidentais, em especial os EUA, no exercício de seus interesses na região. Assim, essas repúblicas estariam sendo assediadas para compor o bloco ocidental (simbolizado na OTAN, organismo militar) e abrir-se para relações econômicas mais intensas com a Europa e os EUA, o que feriria os interesses russos. Se esses não são fortes economicamente, são poderosos militarmente e têm uma tradição de domínio, por vezes brutal e impiedoso na região.
Quer dizer, não tem capitalismo rivalizando com socialismo, mas mantêm-se uma disputa geopolítica feroz. E o que é geopolítica?
Geopolítica: a reguladora das relações internacionais desiguais: geopolítica não é a junção inocente da palavra Geografia com a palavra Política e que daria o sentido de uma política na extensão geográfica do mundo, a política entre os países. Sequer pode ser considerada política propriamente porque no mundo não há instituições políticas nas quais se decide politicamente e com legitimidade os conflitos gerados nas relações entre os diferentes países. Na há instâncias em que se vote, se decida e todos os interesses cedam a essas decisões, como seria, por exemplo, no interior de um país. Os EUA perderam a votação no Conselho de Segurança da ONU sobre a pertinência de se invadir ou não o Iraque (que teria armas de destruição em massa e “acoitaria” grupos terroristas que atacaram os EUA e o mundo ocidental) e, após essa derrota, o país invadiu o Iraque e pronto. Não se entendeu naquele país que essa decisão representava uma força política legitima perante os seus interesses. O que se entendeu (e se entende) é que basta que o país defina quais são seus interesses e que lute por eles, negociando e se preciso guerreando, usando a violência em última instância. Isso seria um “direito reconhecido” de todos os países, isso é a geopolítica, que obviamente une mais força econômica e militar em sua alma, do que política. E nesse sentido, os EUA têm muita força geopolítica no mundo e a Federação Russa também, ao menos naquela região imediata do seu entorno (a Rússia atual não tem a força econômica para “avançar” sobre o mundo, mas tem a militar para assustar). Que a força geopolítica dos EUA (e de seus aliados europeus) se exerça na região da CEI é sem dúvida fonte de conflito, pois ali se encontram acantonados interesses de uma potência geopolítica, que quer se aliar ao mundo ocidental, mas com vantagens que sua história e seu poder militar lhe garantem e isso é a geopolítica. Atiçar a Geórgia, assediar a Ucrânia, é mexer, no contexto atual, com o “grande urso” russo, que quer se posicionar no mundo contemporâneo de acordo com suas forças, afinal ainda somos um mundo em que a força econômica, a força militar falam bem alto, por vezes, bem mais alto que outras possibilidades de relações entre os povos do mundo. Possibilidades que seriam marcadas pela verdadeira política, pela democracia e pela justiça.
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