sexta-feira, 9 de maio de 2008

Colocando rugas no mundo plano*


Jaime Oliva

Primeiro ato: Provocação

É muito curioso comparar a nossa condição com os modelos de ser humano mais avançados, por exemplo, o “ser humano 3.0”. (ver matéria Revista Superinteressante http://super.abril.com.br/revista/242/materia_revista_245897.shtml?pagina=1) Vocês ficariam muito decepcionados se se flagrassem como 2.0, 1,8, ou pior 1.0? Essa classificação de estilo industrial e tecnológico pode ser agora aplicada também à condição dos humanos?
Seguramente, aqui no Brasil parece que somente os seres humanos 3.0 estão familiarizados com o que vem a ser o cidadão 3.0. Isso por que leram um grande best-seller internacional: O mundo é plano do jornalista americano Thomas Friedman. Mas, a despeito do livro e da reportagem (Você 3.0 – Super interessante) defenderem a necessidade do inglês para ser um cidadão 3.0, praticamente todos (e foram muitos) souberam que o mundo é plano em português. Porque no mundo plano que cria cidadãos 3.0, cada vez mais facilmente se traduz, se dá a conhecer em várias línguas idéias poderosas, ou idéias de poderosos. Se esses últimos fossem esperar que todos aprendessem inglês, os bens econômicos e culturais do mundo anglo-saxão, não circulariam como já circulam e dão contornos à vida internacional há muito tempo, não é mesmo?
O ser humano máquina não é, e nem opera com a mesma lógica. Mas a comparação simbólica do livro e da reportagem é rica e permite muitos raciocínios: no mundo dos automóveis e mesmo da informática a ascensão do 1.0 para 3.0, para 4.0, sempre significa mais potência para lidar com dificuldades. Não é assim com um “automóvel 3.0”? Porém, para um carro 1.0 o mundo não pode ter rugas, nem subidas, nem descidas e a natureza não pode lhe ser hostil: o mundo deve ser plano. Mas e o cidadão 3.0 não lidaria melhor com as dificuldades do mundo? Não, para ele o mundo se fez, se abriu com facilidades, ficou plano, mas só para ele, e por isso ele é 3.0. Se o mundo se fizesse fácil e plano para todos, talvez todos poderíamos ser apenas 1.0. Raciocínios podem se multiplicar e se contrapor até todos nos chatearmos, por isso é melhor parar e... colocar algumas rugas no mundo plano, e por isso também é bom lembrar que o mundo velho, com rugas, somos nós, que somos mais velhos e não o “mundo antigo” que tinha pouca idade.

Segundo ato: Colocando rugas no mundo plano

Ruga número 1: sem dúvida a realidade vem se transformando, mas será que se pode dizer que é o mundo que vem se transformando? Isso é apenas um jogo de palavras? Vejamos, se falamos num mundo, plano, irregular ou rugoso, não importa, não estamos falando em algo que é um único corpo? Mas esse corpo sempre existiu para os seres humanos? Usando os períodos da reportagem, por exemplo, o da primeira globalização (a 1.0) seria aquela inaugurada por Colombo. E antes? Era um período pré-globalização, quer dizer os seres humanos das diversas localidades do planeta mal se conheciam, mal sabiam da existência do outro, não eram, obviamente, conectados. Não existia um espaço mais ou menos comum, não existia, portanto, o mundo. Não existia humanidade e sim grupos sociais isolados. Ou será que podemos considerar como humanidade a soma de grupos humanos no planeta, se conheçam ou não? Mas, quem poderia fazer essa soma, somente nós, no presente? E o ser humano não é uma construção das relações sociais? Por que prezo pelo futuro da humanidade? Não é porque a conheço, porque nos relacionamos, porque comungamos certos valores comuns? Mas, voltando à globalização 1.0. Ela começa a criar o mundo, mas ainda de modo precário. Se na 3.0 o mundo é plano para poucos, na 1.0, muitíssimo menos. E quem era “global”? Quem tinha forças e tecnologias, certo que 1.0, para criar o mundo, que nascia plano ou rugoso? Quer dizer tecnologias inferiores, poderes menores forjaram o mundo. Isso não é mais difícil que aplainá-lo depois? Isso não serve para repensarmos o valor das tecnologias? Afinal a informática e a Internet se espraiam num mundo que já existia, num campo preparado e não numa floresta hostil.
Ruga número 2: Vamos agora pensar no indivíduo apenas e não em grupos empresariais e instituições poderosas. O mundo ocidental de uma maneira geral (o que não é pouco), mais uma parte importante do mundo oriental têm incorporado (em proporções diferentes) uma cultura comum. Essa cultura veio da literatura, veio de histórias encenadas em rádios, televisões e cinema, veio pelos jornais de cada país que repercutem muito o mundo europeu e dos EUA (você reparou que houve recentemente um terremoto no Peru no qual morreram mais de 300 mil pessoas e a tragédia é total entre os sobreviventes – dá para imaginar, mas o noticiário é muitíssimo menor que a tragédia do furacão Katrina em Nova Orleans – EUA, embora o número de vítimas no Peru seja bem mais numeroso?). A língua dominante de origem era o inglês, mas tudo chegou aos “consumidores” em sua língua natal, o que aliás pode ter significado uma assimilação mais profunda, não é mesmo? Não somos mais tocados pelo que nos é mais familiar? E durante muito tempo, o veículo dominante desse espalhamento cultural que nos permitiu começar a pertencer a um mundo mais fluído (mais plano?), sermos cidadãos 2.0, foi a escrita. Vocês afirmariam que as gerações atuais (3.0) que têm acesso ao mundo via Internet e com maior facilidades de viagem, conhecem o mundo melhor que aqueles que o faziam, mais lentamente é verdade, mais por meio de leituras e leituras, mesmo que não dominassem o inglês? É claro que hoje há a vantagem do on-line, e ela não é nada desprezível, mas esse on-line pode ser aproveitado de maneira superficial, de maneira rasa, plana, para falar a verdade. Uma maneira ainda eficiente de aprofundar esse entrelaçamento cultural num mundo (note que dar profundidades diferentes a um mundo plano é enrugá-lo) é por meio dos meios já existentes na globalização 1.0 e 2.0 que devem ser respeitados. E entre eles a principal é a escrita e a leitura (e ninguém escreve e fala tão bem em outra língua como na sua língua natal). Afinal, o “serviço sujo” de construção da base do mundo foi feito por eles.
Ruga número 3: A decretação do inglês como uma língua definitiva para ser cidadão 3.0 (e ninguém pode negar a importância de dominar idiomas para o desenvolvimento intelectual e como meio de ter acesso melhor a outras realidades) não precisa ser melhor pensada e não há algo de contraditório nisso? Com poucas noções de inglês já é suficiente para circular tranquilamente na WEB. Tudo é tão padronizado e o auxílio da linguagem visual-digital colabora para facilitar mais as coisas. Senão tomarmos cuidados a discussão do inglês termina aí, o que é muito pouco, e saber esse inglês seria o conhecimento do cidadão 3.0. Claro que não é isso, mas é preciso alertar. Estimular o domínio de um idioma sobre todos os outros não é apenas refletir quem tem mais poder atualmente? Vamos discutir uma coisa: essa língua da globalização 3.0, assim definida sem discussão, sem sombra de dúvidas, não irá oprimir a diversidade das culturas, a riquezas das diferentes sociedades (vocês sabiam, que na França nem os termos da informática como mouse, vídeo, backup, download, delete – aqui todos reproduzidos em inglês, são todos vertidos para o francês. O mesmo se dá em Portugal: nesse país não se clica com o mouse, mas o rato faz esse serviço. E será por que os portugueses e franceses têm menor condição de aprender inglês, ou eles questionam essa obviedade da língua mundial indispensável para ser cidadão 3.0?
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Ruga número 45: Chega de rugas, o mundo da globalização 3.0 já está bem irregular e de planos nem os planos futuros. O cidadão 3.0 talvez tenha que rever sua potência, seus conhecimentos, acrescentar sensibilidade, delicadeza e saber que o mundo é complexo e que se ele fosse plano seria simples: é complexo garantir que todos tenham acesso ao mundo, o que é muito desejável, mas para que os seres troquem, compartilhem suas culturas, seus recursos... mas se o mundo for plano e tudo estiver homogeneizado e falando um inglês raso e plano, para que ser um cidadão 3.0?

(* Versão original de artigo publicado no site da Revista Nova Escola)

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