sábado, 10 de maio de 2008

A armadilha da Geopolítica

Jaime Oliva
Recentemente numa entrevista na Veja (“O Bufão da América, 16/04/2008, http://veja.abril.com.br/160408/entrevista.shtml), o historiador Marco Antonio Villa, com seu estilo ousado e provocativo, que procura, inclusive, a polêmica pessoal, foi muito incisivo e direto sobre o que ele entende ser o fracasso da diplomacia brasileira atual em relação à América do Sul. O governo atual não estaria sabendo honrar os interesses nacionais, aliás, ele nem sabe quais são os interesses nacionais e não conhece os dos vizinhos. E quais são esses interesses nacionais? Aqueles que o Barão de Rio Branco entronizou na diplomacia brasileira de sua época (virada do século XIX para o século XX), diplomacia essa que ele profissionalizou. Logo, interesses de 100 anos atrás, que se manteriam atualizados, como se a história estivesse congelada. Mas, quais são mesmos esses interesses nacionais do Barão, logo de todos nós, segundo Villa, e não apenas de um governo momentâneo?

1. Quais os interesses do Brasil, o que são interesses nacionais? O fundamental da entrevista se concentra nestas expressões. Sem esclarecimento sobre esse aspecto a polêmica levantada corre o risco de ser apenas retórica. Uma pista se abre com a seguinte indagação: por que para o historiador é tão óbvio isso, a ponto de não se ter deixado claro do que se trata? Ele passa a impressão de que interesses do Brasil são de uma obviedade tal que nem precisam ser enunciados. E esses interesses se ligam a outra expressão que também não suscitaria discussão: soberania nacional. Vamos refletir sobre essa obviedade com um exemplo de disputa territorial: somos um país soberano e é de nosso interesse não permitir nenhum avanço sobre o que entendemos ser nosso território. E se entendermos que territórios que estão fora de nosso controle soberano deveriam estar, o que se deve fazer na defesa dos interesses nacionais? Reivindicar sua posse. Mas, se o outro lado não aceitar a reivindicação? Negocia-se. Mas e se outro lado insistir na recusa. Abandonamos a causa? Isso seria trair os interesses nacionais. Então, para não trair vai-se à guerra honrar com sangue nossa soberania. Mas tudo isso tem outro lado: vamos nos colocar na perspectiva do vizinho que quer nos surrupiar território: ele está defendendo o quê? Não são os interesses nacionais de seu país? Estamos nesse caso diante da seguinte situação, que Marco Antonio Villa deixa claro, tratando da questão contemporânea: interesses do Brasil, não são interesses da Venezuela, que não são interesses da Argentina etc. Cada um deve defender os seus e isso entra em contradição com os interesses dos outros. E não há acordo, que conforme o historiador, a diplomacia brasileira anda procurando. Nessas breves contraposições está descrito o programa completo da prática que orientou as relações internacionais dos Estados modernos: a geopolítica, cuja face educada e ilustrada é a diplomacia e a face que vai até as últimas conseqüências das negociações que “não buscam acordos”, é a força militar. A geopolítica não é política, porque nessa última admite-se que uma parte ganhe a disputa, se for dentro de regras consideradas legítimas. Em geopolítica nunca se admite. Admitir o interesse do outro costuma, no olhar geopolítico, ser visto como trair seus próprios interesses. Não é tudo isso que podemos supor quando o historiador faz troça da ação do governo atual que até perderia territórios para bolivianos e argentinos, algo que com o Barão não se deu? Com essa mesma lógica geopolítica os países europeus conflitaram seus interesses até a morte, na primeira e segunda guerra mundial. E quando atualmente assistimos a construção da União Européia, não podemos concluir que ao menos algo dessa lógica geopolítica foi enfraquecido? Ou dito de outra maneira: a história andou, descongelou. E se andou, isso não quer dizer que não se formula mais os interesses nacionais apenas sob o foco tirano e imóvel da geopolítica? É isso que o entrevistado defende, ou ele pretende que os interesses geopolíticos clássicos e previsíveis (aqueles que nem se precisa enunciar) permaneçam para enfrentar o "caudilho boliviano" Morales, que violou interesses brasileiros no território boliviano? Eis aqui, uma boa discussão.

2. A questão democrática e os interesses nacionais: os interesses nacionais que o governo atual ignora (ora por caudilhismo do presidente – bem assessorado, ora por ignorância mesmo, visto que assessorado por uma fraude) são aqueles que os verdadeiros profissionais diplomatas do Itamarati, preparadíssimos, ilustradíssimos, inspirados no Barão do Rio Branco, sabem bem quais são. O atual ministro não aparece “bem na fita” desse saber, e o assessor Marco Aurélio também não. Então, vamos cobrar deles, porque nós sabemos quais são. Sabemos? Mas, se o ministro não sabe, e o assessor principal do governo que é um acadêmico historiador não sabe, como o povo saberá? E por que o assessor não sabe. Ele não é especialista, nunca escreveu uma linha a respeito. Podemos então concluir que saber quais são os verdadeiros interesses nacionais é uma questão de especialistas e a população, por decorrência, está fora dessa definição. O que é uma sociedade democrática? Não é aquela que deve livremente agir sobre si mesma? Essa é a fonte da legitimidade. Tal como se desdobrou o raciocínio de Marco Antonio Villa, quem legitima o que são os interesses nacionais são os profissionais especialistas, herdeiros do Barão do Rio Branco ou a sociedade? Isso está na raiz da crise das democracias modernas: a fonte de legitimação das políticas, da definição dos interesses etc. se descolou do poder do povo (democracia) e migrou para o poder dos especialistas. Em quantas áreas da vida da sociedade contemporânea casos como esses se manifestam? Não é isso que acontece com a retórica dos advogados, notada pelo historiador?
3. A geopolítica da América do Sul: como agem Chaves, Morales, Uribe, Lula, Kirchner na América do Sul? Por que Chaves é imprevisível? Seus passos podem ser medidos e previstos segundo a lógica da geopolítica mais clássica. Ele não estaria defendendo verdadeiros interesses venezuelanos? Não há também um Barão do Rio Branco venezuelano o inspirando? Por que é perigoso? Por que os interesses dos outros são sempre perigosos frente aos nossos? Por que ele não é democrata? Mas, por aqui andamos com essa autoridade toda e clamar pela geopolítica do Barão do Rio Branco melhora a condição de nossa democracia? A defesa da geopolítica pura é um avanço da democracia no mundo contemporâneo? E Morales? Ele foi eleito dizendo que ia rever os contratos com a Petrobrás, que segundo ele não atendiam os interesses nacionais da Bolívia. Foi eleito e atuou nessa direção. Isso é um perigo para nós? Ele não traiu os interesses bolivianos, devemos então usar a nosso poder que é maior e obrigá-lo a trair os bolivianos? Uma frase de Villa pode ajudar a sair dessa discussão que vai se esterilizar nessa batida: o governo Lula age como se houvesse uma integração que não há. Em outros termos: como se a geopolítica não estivesse vigorando plenamente. E parece que ela está, no que Villa tem razão e deseja. Bem o que queremos então, apenas defender interesses nacionais geopolíticos, ou então interesses nacionais formulados noutros termos e pela população (segundo mecanismos democráticos), verdadeira fonte de legitimidade? O problema do debate político no Brasil, e tomará que de fato venha se discutir isso nas eleições, e da democracia, é que não temos resolvido o que queremos e nem sobre o que entendemos ser os interesses nacionais. Logo, não estão definidos, senão apenas nas mentes autoritárias e elitistas. E não faz nada bem para a democracia ter como referências para os interesses nacionais a velha geopolítica, congelada num oxímoro: no tempo imóvel.

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