Jaime Oliva
Como diz o geógrafo Jacques Lévy, planejar é algo que pertence a um “debate velho” e remete a temas tão amplos quanto a identidade nacional e sua dimensão territorial e a sistemas econômico-sociais. Será que a idade do ouro do planejamento já teria passado? No Brasil faz sentido essa afirmação? Ou aqui ainda há sentido em se colocar o planejamento como uma questão de peso nas políticas urbanas e regionais?
Há algo a ser notado. Planejamento urbano não é tema político importante em nosso cenário. Planos funcionam como exigências burocráticas, mas não operam na vida real. Eles se encontram em posição latente, na reserva da política viva, submetidos aos ritmos e as temáticas conjunturais da política. E aí algo problemático acontece. A escala temporal do planejamento entra em tensão constante com a temporalidade dos governos periódicos e essa última parece soberana, e com isso o tema do planejamento fica à margem, isso por um lado; mas ele sobrevive, pois o discurso do planejamento tem prestígio social, ele é forte: a ausência do planejamento seria a fonte principal da maioria dos males sociais, diz o senso comum, mas também vozes especializadas.
A “crise do planejamento” não se deve apenas à sua derrota no confronto com a temporalidade da política, essa escrava da conjuntura. Existem outros elementos: há, por exemplo, uma crise do centralismo político-administrativo, que exige uma nova repartição e reestruturação dos poderes sobre o território. E aqui surge outra tensão, que pode ser exemplificada com os municípios da cidade de São Paulo (sim, São Paulo é uma única cidade formada por vários municípios): os municípios são realidades geográficas da metrópole de São Paulo, corpo urbano único, que pulverizam (ou descentralizam) a coordenação política. Isso impede que se fale e que exista um governo urbano na escala da metrópole, escala essa na qual transcorre, na verdade, a vida urbana de todos os atores (indivíduos, empresas, instituições de ensino e de serviços em geral – a exceção dos poderes municipais). Isso impede que exista um planejamento metropolitano. Quer dizer, então, que o planejamento está intrinsecamente associado ao centralismo? Mas, isso não contraria a tendência, que seria democrática e mais produtiva, da descentralização? Haveria uma questão que colocaria em campos opostos pulverização municipal e centralismo na cidade de São Paulo (logo, o planejamento)?
Não há ainda uma crise de legitimação[1] das ações do estado? Afinal não se admite mais que esse seja o ator inconteste de todos os atos do planejamento regional e territorial. Ele deve ceder espaço também para a manifestação decisória de outros atores sociais. Será esse o fim do planejamento ou então, um novo patamar que se vislumbra? Será esse novo momento operacionalizável, ou o planejamento somente se viabiliza à sombra do estado? Quer dizer: planejamento e estado representam um vínculo natural. Haverá, de fato, além das corporações globais, outros atores sociais dispostos ao planejamento para além do Estado? Será que a centralidade, a capacidade de visão de conjunto, de coordenar do estado é dispensável? Parece que não, mesmo que ele não seja o único ator.
O planejamento se relaciona diretamente com a visão de espaço desejável; infinitos “espaços desejáveis” são logicamente contraditórios ao planejamento, que assim deve atuar sobre alguns princípios em comum:
- O planejamento atua contra desagregações e favorece integrações e coordenações visando otimização de esforços e recursos. Isso é compatível com um regime de mercado? Isso seria compatível com uma cidade pulverizada em vários municípios e sem governo na escala geográfica de sua real dimensão?
- O planejamento atua contra os riscos de se deixar o território evoluir sem “rumos conscientes” (em especial, no que diz respeito à urbanização), logo previstos (previsíveis).
- O planejamento atua para produzir algum tipo de unidade e alguma coesão numa sociedade urbana marcada (o caso da metrópole paulistana) por particularismos fortes e forças centrífugas (algumas desintegradoras). Isso traz riscos, e daí uma necessária consciência para não atropelar com insensibilidade as diferenças (diferenças virtuosas e não suscetíveis de uniformização alimentadas por visões naturalizadas. Uma coisa é a desigualdade a outra é a diferenciação virtuosa) de vários tipos, que existem nessa vasta área da metrópole.
Uma outra problematização importante na questão do planejamento: qual a sua escala? Pode ser parcial, nas dimensões de um segmento do urbano? Quer dizer: pode se referir apenas a um município da metrópole, ou mesmo um conjunto numa parte da metrópole? [2]
Tradicionalmente há um forte vinculo entre planejamento e ação regional, mas isso não responde a questão em vista da complexidade geográfica, política e jurídica que seria atuar num segmento de uma metrópole. À força dos segmentos da metrópole (como de Osasco e suas adjacências, como a do ABCD) deve corresponder um espaço estruturado e planejado com consciência? Será que um segmento da metrópole tem a ganhar se for alvo de políticas planejadas, mesmo que outros não sejam? Que, por exemplo, visem a emancipação da cidadania, a pujança econômica refletida, o enriquecimento da sociabilidade via atividades culturais, esportivas? Será que o planejamento pode incorporar urbanidade (capital social e capital espacial) a um município que não é integralmente a escala geográfica de vida de seu habitante?
Alguns problemas específicos dos municípios periféricos de uma metrópole como São Paulo que podem ser atendidos pelo planejamento se referem às necessidades de maior integração ao centro da metrópole paulista: à produção de uma rede de irrigação na “periferia” que conduzisse os melhores recursos metropolitanos; à atenuação dos contrastes centro-periferia; à “desopressão” das periferias, em especial, em termos culturais; ao fim do isolamento geográfico etc. [3]
Discutir o planejamento significa necessariamente envolver-se nesse debate cercado de complexidade. Uma grande questão ainda persiste: será ainda possível se entender o planejamento como uma imposição tecnocrata? O respeito à concepção democrática, à consideração das diferenças, à pluralidade devem se conciliar a ideais comuns a serem perseguidos? Um ideal de integração e justiça, de construção social republicana, algo que não pode se dar com base em formas de divisão e segregação (o planejamento urbano deve ter por definição função integradora) é possível respeitando a diversidade? Será possível essa engenharia de conciliação entre a diversidade, a definição democrática das metas e a busca de alguns objetivos comuns?
[1] Não se pode abstrair a crise retumbante das denominadas economias planificadas no mundo socialista que se ergueu e que se esfacelou no século XX.
[2] Um exemplo interessante, a propósito, é a região do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) que desdobra em seu território o modelo automobilístico de circulação do município principal. Haveria, como num segmento, estruturar outro modelo? Mas, como fariam as pessoas quando tivessem que ir ao município central (coisa que elas fazem sempre, pois ninguém vive numa metrópole como São Paulo, num único município)?
[3] É notório que as “carências” da região, em especial em suas áreas periféricas, são atendidas com uma organização territorial dos serviços, que segue uma lógica territorial (um planejamento) de grandes corporações comerciais/globais. Um exemplo: nas “portas de entrada” da região (Osasco e o complexo Alphaville e Tamboré em Barueri) há “cinturões” de estabelecimentos comerciais de grande porte (Shoppings, casas de material de construção, hipermercados varejistas e atacadistas etc.) que de forma concentrada abastecem vários municípios da metrópole (eles também não atuam na escala do município). Isso revela a não disseminação de serviços ao longo do território, a ausência de urbanidade nos bairros, o que o senso comum chamaria de “falta de planejamento”, visto que essa concentração de estilo suburbano (modelo americano) parece estar em local indevido.
Bibliografia
Jacques LÉVY. Aménagement du territoire. IN. Jacques Lévy et Michel Lussault. Dictionnaire de la Géographie er de l’espace des sociétés. Paris : Belin, 2003, p. 65-68.
Para fazer referência a esse artigo
Jaime OLIVA. A Atualidade do Planejamento Urbano. IN : Jaime Oliva (Geografia), publicado 06.11.2008 em http://jaimeoliva.blogspot.com/
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