quarta-feira, 28 de maio de 2008

Paquistão: uma constituição dramática


Jaime Oliva

Examinar a situação atual do Paquistão é uma ótima oportunidade para nossa educação política e social. Sua história é recente, sua constituição está ainda no início. Todos os precedentes históricos ainda estão ali presentes quase em seu formato original disputando uma presença maior no país, resistindo à dissolução e a transformação em outra coisa. É isso que se depreende na reportagem Conflito pela alma do Paquistão (http://viajeaqui.abril.com.br/ng/materias/ng_materia_270354.shtml) publicada na National Geographic onde se enuncia que o Paquistão ainda não se consolidou. O que uma frase como essa quer dizer? Eis um sentido possível: as nações, os países tal como conhecemos no mundo moderno (inclusive os asiáticos) são construções mais ou menos recentes. São produtos da reunião de grupos distintos (etnias), logo da incorporação dos territórios respectivos num território maior da nova nação, da nova nacionalidade. Como isso se aplica no caso do Paquistão?
Vários grupos étnicos distintos foram reunidos num território comum (punjabis, sindis, baluques, patanes etc.) e o que havia de comum entre eles era sua condição de muçulmanos dispersos num território mais amplo que era a Índia. A partição entre um território para os hindus e um para os muçulmanos deu origem ao Paquistão. As etnias e o quadro religioso (uma dimensão cultural de muito peso no caso) comporiam o quadro de ingredientes para a construção de uma nova identidade: o paquistanês.

Luís Paulo Ferraz
Fronteira do Paquistão com a Índia
Essa identidade seria superior em relação às identidades anteriores. É isso que significa o ser nacional. As outras identidades (étnicas e religiosas) não precisariam desaparecer, porém não é concebível que cada uma delas organizasse um modo de vida que incluísse leis, regras e justiça próprias. Aí seriam diversos países, diversas nacionalidades. Isso cabe à identidade maior, ao Paquistão, ao paquistanês. E o que se assiste e se nota no país: um risco de fratura, divisões múltiplas com base nessas diversas identidades, que parecem encontrar dificuldades sérias de convívio. É uma fragilidade da identidade nacional, que teima em não envolver esses grupos sociais. Esse é o pano de fundo, que nesse caso não está tão no fundo, em que se deve discutir a situação desse país e seu papel no quadro mundial.

Uma geografia incoerente: O que dificulta que o Paquistão se estruture como um país coeso, com população que consiga coexistência apesar da diversidade cultural, que consiga se tornar de fato uma sociedade com princípios gerais comuns (o que é uma redundância, que no caso precisa ser afirmada), que tenha condições de decidir mais ou menos por um futuro consciente? Ou será que a construção nacional de fato não é viável e nem desejável? Um aspecto geográfico de importância compromete a coerência da constituição nacional. Os grupos sociais (etnias) que vivem ao norte e no oeste do país se identificam pouco com o paquistanês, visto que entre outros motivos vivem isolados do restante do país que se situa no leste e no sudeste. A integração geográfica é pequena, as trocas de lado a lado são pequenas. As influências do “Paquistão moderno” (leste e sudeste) sobre o território como um todo é precária. Construção nacional sem constantes relações sociais, econômicas, sociais e políticas entre os envolvidos é algo fadado ao fracasso. A tendência é que os grupos mais isolados encerrem-se em suas culturas e cultivem a diferença marcada por valores muito próprios, e por tudo isso, impermeáveis às mudanças. Isso talvez explique a nossa perplexidade quanto a certos hábitos dessas culturas excessivamente locais.
Uma política defeituosa: a construção nacional que busca coesionar etnias distintas (de relação anterior bastante tensa) ferida por conflitos armados, como é o caso do Paquistão, não será bem sucedida se os valores de uma etnia, ou de um entendimento religioso forem impostos. Certa tolerância com valores diferentes (o que no Paquistão nem tem um grau elevado), um grau, ao menos razoável, de liberdade de ação individual, um regime político forte (com projeto), mas não autoritário, são condições necessárias. E aí está tudo que não se configurou no Paquistão: a tolerância ao outro e o reconhecimento de valores individuais não prosperaram. Falar-se em regime democrático que tem como base grupos sociais que discriminam as mulheres e os grupos sociais “inferiores” de forma brutal, onde os casamentos são arranjados e as pessoas não namoram em público (escolha individual), isso inclusive nas grandes cidades (em Karachi há mais tolerância que em Lahore) é algo que não fecha a equação. Daí que a política nacional se deformou: o autoritarismo militar é a “força coesionadora” o que francamente, não indica um futuro razoável e comum.
Relações internacionais infelizes: somado aos impulsos arbitrários de forças governamentais que obtém sua “legitimidade” por meio da força (por exemplo, o General Zia-ul-Haq comandou uma “virada nacional” em direção ao fundamentalismo islâmico, sem base social para isso), o Paquistão viveu e vive relações com as maiores potências do mundo que adicionam ingredientes conflituosos ao seu drama nacional. A virada islâmica do General Zia-ul-Haq era de interesse dos EUA, assim como agora ela deve ser freada e combatida segundo os atuais interesses dos EUA. Tal como o Iraque, o Paquistão também é expressão dos desastres engendrados pela geopolítica americana. Tanto na ascensão de Saddam Hussein quanto na do fundamentalismo islâmico há a presença dos norte-americanos. Nesse momento, o apoio norte-americano ao atual governo paquistanês e a correspondência desse (em alguma medida, o segmento militar foi “abastecido” pelo ouro americano), é mais um elemento que dificulta a construção nacional. Algo a mais, como já não fosse o bastante o que existe, a dividir a nação que ainda não se consolidou.
Política defeituosa II: a inoperância para os problemas da vida prática (infra-estrutura urbana, saúde, educação, segurança, justiça, distribuição da renda etc.) por parte das autoridades governamentais é mais um fator de divisão. A discriminação de classes sociais se adiciona à divisão como conseqüência. As alternativas a essa inoperância de um segmento social que comanda o país e se beneficia disso privadamente, encontram-se na organização de entidades e movimentos da sociedade civil mais modernizada (sempre às voltas com a repressão) e para a população de um modo geral, o horizonte existente é o do comunitarismo religioso, que em geral termina deslizando (o caminho é curto e boa parte já foi percorrida) para a construção de identidades fechadas em torno de valores religiosos e intolerantes com as diferenças.

Luís Paulo Ferraz

A arquitetura nacional de qualquer país contemporâneo foi marcada por dificuldades e por conflitos violentos. Nesse sentido o Paquistão não é diferente. Mas, há diferenças importantes que valem ser destacadas: 1. Nesse país a construção está se dando em dissidência com a construção da democracia e da liberdade individual (sem juízo de valor, não foi assim nas outras construções nacionais); 2. Trata-se de uma construção num momento em que mesmo as construções nacionais mais consolidadas estão perturbadas (enfraquecidas?) com a uma nova força mundial, que chamamos de globalização.
Diferentemente do que se convencionou o grande drama paquistanês (será que esse é um bom nome para batizar esse drama?) está muito longe de se reduzir à questão religiosa.

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